quarta-feira, 24 de abril de 2013

O Transe de Caboclo e sua Magia


Por: Gregorio Lucio


Caboclo que vem da mata, 
Da mata traz seu poder.
Arreia, Caboclo, arreia
Arreia que eu quero ver


Escrevemos este texto tratando especificamente da experiência espiritual de caráter mediunista, presentificada no transe de caboclo, associando-a aos seus respectivos significantes psico-sociais na vivência religiosa.

As entidades que se manifestam nos terreiros de Umbanda sob a forma simbólica de Caboclos, carregam consigo, concomitantemente, uma mensagem espiritual e um conteúdo psicológico de caráter profundo, os quais são depositados nas "zonas de registro" da individualidade do médium.

Muitas obras e conteúdos disponíveis na internet tratam das características destas entidades espirituais, seu tipo de trabalho, e toda uma variedade possível de linhas e falanges sob as quais se congregam esta coletividade astralizada. Nosso enfoque, como já é de conhecimento de nossos leitores mais assíduos, não será o de discutir essas questões, pois estas cabem aos fundamentos e a tradição seguida em cada templo de Umbanda, mas sim o de oferecer uma óptica compreensiva em torno da figura do Caboclo de Umbanda, de cunho psicológico e social e, ainda mais especificamente, qual a sua relação com a estrutura psíquica do médium quando da estruturação do seu tipo de transe.

Dizemos isso, pois sabemos que na Umbanda cada entidade astralizada desenvolve a sua manifestação, a qual se consolida por meio de um transe construído em conjunto com seu respectivo cavalo-de-santo (médium), tendo este, o transe, uma variação de acordo com o tipo de entidade espiritual (se caboclo, preto-velho, criança, baiano, etc.). Dessa forma, nos ateremos a esta grandiosa manifestação mediunista na Umbanda.

A figura do Caboclo (que na Umbanda simboliza não só o mestiço do branco com o indígena, mas também toda a memória ancestral dos nativos brasileiros) constela em torno de si uma variedade simbólica de cunho espiritual, psicológico e social, conforme afirmamos anteriormente. 

A palavra "caboclo" tem como origem o termo em Tupi "caá-boc", que significaria "aquele que vem da mata".

O Caboclo representa o ancestral primeiro na formação de nossa sociedade. Suas práticas culturais estão gravadas em nosso inconsciente coletivo, zona estratificada de nosso inconsciente profundo. Sua relação com a terra e a Natureza, por intermédio da magia e da sua mitologia (expressa nas diversas culturas indígenas) estão fixadas em nosso cosmo interior, e também no astral da América do Sul, dominando uma extensa faixa de vibração, segundo a ótica espiritual, na qual congrega-se uma incalculável egrégora de seres espirituais que afinizam-se com essa terra e com o povo desta região. Sabemos que cada nação possui uma faixa espiritual que a envolve, reunindo a coletividade de espíritos compromissados em ter ali uma ou mais encarnações, construindo sua mundivivência.

Muito mais do que a imagem do silvícola ignorante e brutalizado, estigmatizada pela visão eurocêntrica cristalizada em nossa cultura, estes seres possuem uma ampla consciência em termos de vivência coletiva, instrumentalizada por uma mitopoese que regia a sua produção mítica e, consequentemente, seus arranjos na composição social pertinentes a cada tribo.

A pajelança, prática xamânica de caráter mágico-terapêutico, expressava uma cosmovisão peculiar acerca do ambiente espiritual e natural. Compreendia a ancestralidade e o mundo mítico, etérico e, em determinadas culturas nativas, incluia a própria noção da reencarnação.

O transe anímico e mediunista também estavam presentes. Por meio de recursos utilizados, como danças rituais e beberagens específicas, havia um contínuo trânsito, nesta cultura, entre os planos físico e espiritual.

Como entidades espirituais, os Caboclos representam a condição dos Espíritos que integram uma condição de vida, no plano espiritual, com a qual ainda sonhamos. Estes vivem em uma comunidade harmônica, repleta de ideais concretizados na ação altruísta e coletiva, tanto quanto na postura altiva, serena e madura, como características significantes que enxergamos nos indivíduos e sociedades emancipadas espiritualmente.

Por desfrutarem de uma vivência, na condição de Espírito, que confirma as expectativas elaboradas pela nossa busca em torno do homem integral e da sociedade emancipada espiritualmente, essas individualidades que habitam os planos extrafísicos vem comungar, por reconhecerem-se num sistema cósmico de interdependência com todos os seres, com aquelas consciências imersas no ciclo da reencarnação.

Assim, "[...]nos cultos afro-brasileiros a consciência se desenvolve no sentido de reconhecer que o ego é constantemente interpelado por outras figuras que com ele convivem constantemente, e que atuam e se expressam por meio dele, colocando-o sob seu influxo (Segato, 2005, apud Silva).

Pelo contato advindo da comunhão mental estabelecida por estes Numes espirituais com a individualidade mediúnica, deixam impressos, ao longo do tempo, no campo de consciência do medianeiro (Campo Intuitivo), as marcas dessa experiência, depositando ali seus conteúdos salutares os quais servem para "despertar" aqueles de natureza similar, presentes no inconsciente profundo do médium, dotados de uma energia psíquica capaz de motivá-lo e movimentá-lo para a aquisição daqueles valores de plenitude e maturidade, tão necessários não só para a vida em Espírito mas, também, para lidar com os desafios da vida cotidiana, notadamente, na fase adulta e na aproximação da desencarnação, advinda pela velhice.

As interpretações em torno da forma pela qual os Caboclos apropriam-se do aparelho psíquico (psiquismo) e fisiológico (corpo) do médium, projetando e fixando seus fluidos (irradiação espiritual) em determinadas áreas do corpo do médium, dão-nos a possibilidade de verificarmos que a "comunicação" realizada pelas entidades espirituais para com seus cavalos-de-santo, ocorre com a ligação do Guia não só ao campo psíquico do médium, mas também com o assujeitamento do corpo deste ao seu comando.

Mais uma vez notamos a importância do corpo, o qual não deve ser entendido como estando somente numa condição estática e indiferente ao estado psíquico do sujeito-médium, mas, ao contrário, como um mapa no qual gravam-se as impressões das experiências do Estado Superior de Consciência, advindos na ocorrência do Transe Mediunista. Relatos de médiuns de Caboclos, dão conta de que a sensação da experiência de contato com entidades femininas desta categoria (Caboclas), é de leveza e suavidade, enquanto que a influenciação daqueles de gênero masculino (Caboclos) evoca uma sensação de peso e rigidez experimentadas no próprio corpo. É importante para o médium tornar consciente essa experiência; perceber como sente e o que sente durante seus estados de transe para melhor extrair o significado deste momento e poder ampliar o conhecimento a respeito de sua própria sensibilidade mediúnica.

As imagens simbólicas que são evocadas à consciência do médium, traduzem um sentido psicológico que é trazido à tona e fixado no campo limiar - próximo-consciente - da personalidade mediúnica.

Podemos observar como os médiuns, em estados de transe de Caboclo, mais ou menos acentuados, assumem posturas de grande segurança, altivez, destreza, e mobilidade- principalmente quando observamos as danças rituais performadas por estas entidades, algumas de grande beleza, em que os médiuns giram em torno de seu próprio eixo, com mãos e braços efetuando a expressão de simbologias específicas-, denunciando um estado psíquico que exterioriza a busca interior do próprio indivíduo-médium na aquisição desta segurança, equilíbrio, firmeza e serenidade tão bem manifestadas por estas entidades.

De tal sorte que, como efeito desta experiência espiritual, da comunhão mental médium-Guia, são postos em movimento, a pouco e pouco, os conteúdos positivos profundos da natureza psíquica do médium, possibilitando que assuma-os para si, integrando-o no seu consciente e permitindo-se aprofundar-se na autodescoberta, trilhando um caminho de amadurecimento, de auto-realização, auto-plenificação, autogratificação. Segundo a terminologia junguiana, permitindo a entrada consciente no processo de individuação.

Isso faz-nos crer que, o grande símbolo psicológico-espiritual que circunda o imaginário dos Caboclos na Umbanda, a Natureza, diz respeito, valendo-nos das expressões de Spinoza, ao que vai além da substancialidade da natureza, vista como algo exterior, tal como a conhecemos (composta por matas, águas, ventos, fauna, etc)- a "natura naturata" -. Para além disso, a Natureza que nos é evocada interiormente pela atuação espiritual do Caboclo refere-se ao caminho que a comunhão com estas entidades espirituais abre para reconhecermos e compreendermos a nossa Natureza interior, a essencialidade da nossa existência - a "natura, naturans"-; o sentido psicológico e final que advém do autoconhecimento e a vinculação integral ao Deus interno, o qual está em nós, embora ainda desconhecido.

A priori, na gira de caboclo, há um trabalho com o nível de consciência coletivo, em que todos os presentes são tocados e convidados a participar do ambiente espiritual formado. As mensagens trazidas em seus pontos cantados evocam memórias coletivas e congregam em si faces do próprio imaginário que as revestem e lhes dá profundidade.

Podemos, num exercício de reflexão, lembrarmos de alguns símbolos psicológicos que permeiam a manifestação do transe de Caboclo (importante frisar que englobamos no significante Caboclo, tanto a representação das entidades masculinas quanto as femininas), os quais também estão presentes no imaginário que evoca a memória destes Guias espirituais. Natureza, terra, matas, sol, lua, águas, pássaros, cobra, raiz, flecha, luz, equilíbrio, força, pé no chão, movimento, serenidade, segurança, firmeza, energia, seriedade, simplicidade, sabedoria, conquista, destreza, inteligência...

Assim, da mesma maneira como vínhamos tratando, nos parágrafos anteriores, acerca do que a experiência do transe de Caboclo insculpe no psiquismo do médium e aditando a isso a lembrança de que o culto religioso na Umbanda é realizado por meio de um Rito coletivo, no qual há a comunhão da manifestação espiritual não somente entre o médium e seu Guia, mas também entre todos os participantes do trabalho, podemos dizer que faz parte do trabalho dessas entidades espirituais, proporcionar aos demais esse mesmo processo de autodescoberta e movimentação psíquica para o amadurecimento da individualidade.

Dessa forma, em termos de trabalho coletivo, os Caboclos criam e vinculam em torno de si um campo de irradiação espiritual, enquanto dure a sua "gira", que afeta e influencia a comunidade presente no Rito, abrindo campo para a inspiração destes conteúdos salutares no campo subjetivo.

Finalmente, outra questão a se destacar refere-se ao trabalho mágico-terapêutico, realizado pelos Caboclos. O passe, o aconselhamento, o conhecimento das ervas e da fitoterapia, cumpre um caráter profilático, pois aproxima-se da necessidade dos que buscam auxílio e consolação nas tendas, terreiros, templos e choupanas de Umbanda, cumprindo a função espiritual-social de acolhimento e alívio das tensões de várias ordens que afligem e comprometem o bem-estar do ser humano.

Quando o Caboclo digna-se em comungar da experiência do Transe com os seus "filhos-da-Terra" e arria na coroa mediúnica de seu cavalo-de-santo, ele traz o mundo mágico, encantado e espiritual da Aruanda Infinita, da Jurema, sacralizando o corpo de seu médium, o ambiente no qual se encontra e servindo de elo entre o plano espiritual, o Sagrado, e o plano terreno para que possamos ter possibilitado acesso às dimensões mais profundas da nossa própria existência, facultando-nos, enquanto dure nossa jornada de aprendizado nas Leis de Umbanda, adquirir justamente os valores e as conquistas interiores que estes Numes Espirituais nos vêm simbolizar: Simplicidade, Maturidade, Segurança e Serenidade.

Saravá a todos os Caboclos!

Okê Caboclo!

Bibliografia Consultada:

Pagliuso, Ligia; Bairrão, José Francisco Miguel H. (2010). Luz no Caminho: Corpo, Gesto e Ato na Umbanda (artigo científico)
Pradi, Reginaldo (2002) ). A Dança dos Caboclos (artigo científico)
Silva, Rosevel G. (2007). Entre memórias e demandas sociais: As teias de reciprocidade dos Espíritos Caboclos (tese de mestrado)
Rotta, Raquel R. (2010). Espíritos da Mata: sentido e alcance psicológico do uso ritual de Caboclos na Umbanda (tese de mestrado)
Ramos, Rafaela M. (2004). Okê, Caboclo! Um estudo etnográfico sobre a dança do caboclo na Umbanda
Silva, W.W.da Matta (2009). Umbanda de Todos Nós
Lima, Tereza M. de O.; Fonseca, Denise P. R. da (2007). Caminhos de Luz Apostolados Afro-descendentes no Brasil
Zimmermann, Elisabeth (2009). Corpo e Individuação