terça-feira, 27 de dezembro de 2011

As Hierarquias na Umbanda


Por: Gregorio Lucio


A Umbanda caracteriza-se como uma religião notadamente sacerdotal, dotada de ritos de iniciação e ascensão do conhecimento relativo ao universo simbólico/sagrado por parte de seu adepto, conforme este avança pela estrada espiritual, configurando-se como um praticante cada vez mais integrado às vivências dentro da tradição umbandista a que esteja vinculado por intermédio do terreiro que frequente e de seu mestre espiritual: seu pai ou mãe-de-santo.

Os sacerdotes de Umbanda (pais e mães-de-santo) detém e legitimam os domínios do conhecimento do sagrado dentro do rito, e é por meio da transmissão feita por estes que dão-se os acessos dos filhos-de-santo aos diversos níveis da estrutura da liturgia, angariando novos saberes e ascendendo os degraus da iniciação. Desta forma, as relações hierárquicas estabelecem-se primordialmente como mecanismo de estruturação de poder a ser convertido em um saber passível de transferência por meio do processo da comunicação estabelecido entre mestre e discípulo no decorrer do tempo de vivência religiosa, à medida em que são observados o comportamento e engajamento do discípulo junto ao seu templo, à sua tradição, e principalmente no cumprimento dos papéis sócio-religiosos que dele fazem-se esperados conforme avança e aprofunda-se na experiência religiosa. 

Assim, estão configurados dentro do mundo de relação presente nos terreiros de Umbanda, as figuras do Pai/Mãe-de Santo, Pai-Pequeno/Mãe-Pequena, Médiuns (graduando de acordo com o nível de iniciação ritual), Cambonos, Ogãs e a Assistência. 

Tal ordenação implica no fato de que o adepto dos círculos espirituais umbandistas, deve dominar e compreender determinados níveis da experiência mítica e sagrada pertinente ao universo religioso em questão e submeter-se àqueles que se apresentam como pertencentes aos níveis de hierarquia mais elevados, bem como aos espíritos Guias e Protetores, objetivando fazer-se bom aluno para no futuro lograr ser, de igual forma, um bom mestre. 

O Pai-Pequeno e a Mãe-Pequena representam a extensão da influência espiritual/social do Pai/Mãe-de-Santo sobre todos no terreiro, devendo por isso corresponder-lhe afirmativamente quanto às expectativas pertinentes ao seu papel, primeiramente pelo exemplo de compromisso e responsabilidade, zelando pela boa preparação e disciplina do corpo de médiuns, a boa orientação dos médiuns novos, a contribuição na transmissão do conhecimento simbólico/espiritual e também das informações organizacionais referentes ao templo. 

Aos médiuns já iniciados, cumpre seguir as determinações de ordem espiritual e social transmitidas pela direção do templo e aplicar-se na prática da experiência religiosa, mediante o trabalho com seus Guias para que possa evoluir no domínio de sua função mediúnica, cumprindo seus deveres de preparação ritualística e espiritual, bem como adquirir cada vez mais ciência a respeito dos ritos praticados dentro e fora do templo, o cronograma destes ritos, os trabalhos de caráter especial/iniciáticos, aliados a conhecimentos sólidos e bem estruturados acerca de sua religião e de seu mediunismo. Tudo isso para que possam tornarem-se adeptos conscientes e críticos em torno de sua religiosidade, além de suficientemente esclarecidos a respeito dos fundamentos de sua prática religiosa.


Já aos Cambonos (Cambones) cumpre o acompanhamento das entidades espirituais ao longo dos trabalhos, fornecendo aos médiuns o suporte necessário, também no que se refira aos objetos que estes necessitem utilizar no decurso do trabalho espiritual, a observação atenta da assistência a fim de zelar pela tranquilidade dos trabalhos e pela orientação daqueles que adentram à casa pela primeira vez, ou que vejam-se tomados pelo fenômeno do transe em meio ao trabalho (estando na assistência), a coleta de cartas e bilhetes redigidos pelos assistidos (solicitando atendimento de suas necessidades, pedidos de oração, etc).

“Quanto mais as pessoas sobem os degraus de uma evolução espiritual nos níveis da hierarquia mediúnica, mais se submetem às regras do desempenho de seus papéis e mais interiorizam as crenças pertinentes ao seu status”(Victoriano, 2005).

O desenvolvimento mediúnico permite uma assimilação das linguagens rituais e seu executar ao longo da prática umbandista, cujo seu aprofundamento e integração no psiquismo do médium, permitem-no uma cada vez mais afetiva e segura incorporação – a firmeza do médium -, fazendo com que esteja cada vez mais em evidência perante o dirigente/sacerdote do terreiro, e possa aos poucos ganhar o seu “consentimento para que represente a experiência simbólica das entidades” (Victoriano, 2005) perante o próximo, contribuindo no atendimento e participação na "linha de passe", na presença ativa nos ritos de tratamento espiritual, nos ritos de iniciação, entre outros.

A própria subordinação do adepto às normas sócio-administrativas que regulam as atividades do terreiro (em seu aspecto social e colaborativo) também define-se como caracter estabelecido da relação de respeito hierárquico, na qual cada um concorre para a manutenção do templo, zelando pela sua integridade financeira (de maneira que este possa arcar com seus custos fixos para manter-se em atividade ao longo do tempo), assim como adaptando-se às regras de convivência social dentro do templo (dias e horários a serem obedecidos, roupas que deverão ou não ser utilizadas dentro do templo, modos de falar e se comportar, etc).

As hierarquias presentes na Umbanda também verificam-se nas relações do mundo espiritual, no qual estão estabelecidas as formas de relação e subordinação dos Guias e Protetores trabalhadores de determinado templo aos Espíritos que se afigurem como os Dirigentes daquele núcleo religioso. Por tanto, seguimos os princípios de ascensão espiritual no tempo como atributo principal de sustentação dos ritos e da raíz da tradição seguida por cada templo, de maneira a perpetuar e intensificar as noções de identidade espiritual do rito e, consequentemente, de seus adeptos, vinculando-nos a todos numa mesma dimensão consciencial de entendimento da Vida e da realidade espiritual, portanto, numa mesma egrégora. 

Assim é que as estruturações de relação entre os indivíduos dentro do rito, correspondem ao obedecimento de uma ordenação originalmente estabelecida na dimensão espiritual, e suas inter-relações dimensionais dão-se na medida  em que, como discípulos, saibamos comportarmo-nos como tal, assim como aquele que se faz mestre também guardará uma atitude correspondente ao seu papel.

A troca simbólica efetuada na vivência espiritual entre os adeptos umbandistas, e destes para com seus pais e mães-de-santo, fortalecem a dinâmica dos trabalhos efetuados em favor de todos, estreitando os elos entre a Corrente Mediúnica do Terreiro com a Corrente Astral de Umbanda, com a qual aprendemos a nos ligar e identificar, finalizando por mitificá-la em nosso campo psíquico, servindo a multiplicidade de seres do mundo espiritual, advindos deste mundo mítico e transcendente, os quais acessam nosso campo mediúnico, como fatores de integração psicológica e fortalecimento da noção de identidade profunda e espiritual de que todos somos dotados.

Colhemos, pela diversidade de componentes e níveis de manifestação da realidade espiritual expressa pela Umbanda, vários momentos de felicidade e profundas experiências mediúnico/espirituais, das quais guardamos lembranças e convicções íntimas da imortalidade do espírito e da beleza que se revestem os planos de Aruanda, os quais podemos constatar durante os trabalhos de ordem espiritual, ressignificando nosso existir e agradecendo sempre por sermos discípulos de tão grandiosa trilha de luz em mais esta encarnação, pois aprendemos cada vez mais a rogar a cobertura de nossos ancestrais, guardar carinho pelos nossos pais/mães-espirituais, irmãos mais velhos de santo e assegurar o respeito mais profundo pelos irmãos mais novos. 

Por isso, peço a benção aos mais velhos e dirijo meu respeito aos mais novos...

Saravá a todos! 

Bibliografia Consultada:
Bairrão, J.F.M.H., Pagliuso, Ligia (2010). Luz no Caminho: Corpo, Gesto e Ato na Umbanda (artigo científico)
Oliveira, Etiene Sales de (2005). Umbanda de Pretos-Velhos: A tradição popular de uma religião (tese de mestrado).
Victoriano, B.A.D. (2005). O prestígio religioso na Umbanda – dramatização e poder
Lima, Bennto de (1997). Malungo – Decodificação da Umbanda
Rivas Neto, Francisco  (2002). Umbanda – A Proto-Síntese Cósmica

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Saúde e Cura na Umbanda: Vivência religiosa e bem-estar



Por: Gregorio Lucio

O entendimento a respeito da Saúde deve estar centrado na compreensão de que esta corresponde ao "estado de completo bem-estar físico, mental e social' (OMS 2011) passível de ser vivenciado pelo ser humano. Desta forma, tal conceituação não implica somente na ausência de sintomas ou doenças, mas na concepção de que é a partir da maneira pela qual o indivíduo relaciona-se com a realidade (interior e exterior) que este estabelecerá seus estados de saúde e bem-estar ou de adoecimento e perturbação.

Entendemos ser a vivência religiosa um dos recursos mais profícuos para o estabelecimento de estados de saúde e bem-estar no ser humano, uma vez que esta faculta a integração do individuo a um contexto de experiências que o possibilitam identificar significados mais profundos em sua própria existência, compartilhando-as, ainda, com o grupo ou comunidade no qual este efetiva a sua integração.


Segundo a compreensão umbandista, somos Individualidades reencarnadas em processo de ajustamento e re-identificação com a divindade e com nossa origem primordial: o Orixá. Por isso, a existência, dentro de nosso círculo religioso, da filiação entre o adepto e o seu Orixá, por intermédio de seu Guia, "Pai-de-Cabeça".

A busca de sentido do ser humano, segundo nosso sistema de crenças, situa-nos num mundo de relação direta com a dimensão espiritual, por cujo contato com os Guias e Protetores torna-se possível estabelecer formas criativas de significação de nossa vida interior.

Os valores que são vivenciados dentro da comunidade religiosa, cujos ensinamentos e exemplificações nos são ministrados pelas entidades espirituais, bem como pelos sacerdotes/sacerdotisas dirigentes do templo, facultam-nos a possibilidade de criarmos novos sentidos para as nossas necessidades subjetivas, reelaborando dramas, conflitos, criando um sentido de utilidade para nós mesmos e de pertença a um grupo, no qual identificamo-nos como sendo parte integrante.

Os efeitos emocionais da vida religiosa somam-se ao comportamento do indivíduo, porquanto os princípios éticos e morais, fortemente estabelecidos no meio religioso, aos poucos passam a integrar-se na consciência do adepto, permitindo que esse reflita com maior frequência a respeito da finalidade da vida, de seus compromissos e deveres perante a família e a sociedade, assim como de tudo quanto lhe caiba como responsabilidades perante a si mesmo, em seu processo de auto-desenvolvimento.

Soma-se a isto, a compreensão que a fé religiosa dota o ser humano de um sentido existencial, proporcionando que este supere às constantes dúvidas e incertezas que lhe povoam os pensamentos, dando-lhe uma direção e um objetivo pelos quais lutar e seguir adiante em sua caminhada existencial.

A fé umbandista, por fornecer ao adepto a crença e a convicção na existência de um Mundo Maior, transcendente a este universo imediato e transitório, motiva-o a buscar recursos, por meio das práticas e comportamentos prescritos pelo templo religioso, que ajudem-no a lidar com as várias situações que se afiguram presentes ao longo da vida.

A confrontação com a realidade da morte (dos outros e de si mesmo), da doença, dos infortúnios de toda a sorte, tanto quanto aquelas vivências de indizível felicidade e gratidão, por meio da prática da caridade e do exercício voluntário da abnegação em favor do próximo e da própria comunidade religiosa, granjeiam no íntimo de cada adepto valores imperecíveis e marcantes, cuja meditação particular em torno destes, levará ao estado de compreensão das Leis da Vida, as quais cada um de nós encontra-se vinculado.

 A adoção do hábito da oração, da reflexão e da meditação em torno da realidade de si mesmo, bem como das necessidades dos outros ao seu redor, ampliam o sentimento de compaixão, humildade e tolerância, por reconhecer as suas próprias limitações como ser, não impondo, por conseguinte, ao próximo, exigências de comportamento de quaisquer natureza, ao mesmo tempo sabendo manter-se firme em suas convicções íntimas, fazendo-se maduro emocionalmente, guardando uma correspondente postura Ética em seu labor diário na sociedade, na família, e dentro da comunidade religiosa.

As práticas religiosas são realizadas pela Humanidade desde os tempos mais primevos, preenchendo todas as culturas espalhadas pelo planeta com seus símbolos, valores e ritos. Como seres em processo de desenvolvimento espiritual, passamos por várias destas culturas, colhendo de cada uma as experiências necessárias para nosso aprimoramento e ascensão consciencial.

Ligados hoje à Umbanda, realizamos dentro de nosso contexto cultural-religioso, as práticas correspondentes a tal universo, por meio das quais buscamos reintegrarmo-nos à dimensão divina, restabelecendo nosso contato inicial de unificação da consciência com o Sagrado. Tal experiência preenche-nos psicológica e espiritualmente, colocando-nos em contato direto e dinâmico com a possibilidade da saúde e da cura: a autocura.


Ao integrar-se a um templo religioso umbandista detentor de um corpo de fundamentos e ritos bem estruturados, o adepto compreenderá a Umbanda como sendo um caminho espiritual a ser seguido (Jorge, 2008), abrindo-se para ele uma série de práticas dentro do rito que o façam entender que a doença não existe por si só, mas há o indivíduo doente. Assim, ao reconhecer o seu estado espiritual, o adepto poderá decidir-se por adotar práticas que o desvincule dos processos doentios, facultando-lhe restabelecer a conexão com seu estado de plenitude interior, ligando-o ao seu Orixá, por meio do entendimento de que sua conduta deverá ser a de buscar sempre o melhor para si, com maturidade e discernimento, evitando o sofrimento e contribuindo para o  seu próprio aprimoramento.

As práticas ritualísticas na umbanda, portanto, são terapêuticas em si mesmas, endereçando-nos os caminhos da auto-cura e da conexão com a Divindade. Durante os trabalhos espirituais, isso ocorre durante vários momentos e em vários níveis. Vejamos:

Nas giras - as correntes de espíritos trabalhadores, manifestos por meio de seus médiuns descarregam energias negativas, desbloqueiam energias acumuladas nos centros de força do complexo orgânico das pessoas presentes nas giras e fornecem orientações espirituais.

Como disciplina a ser aprendida mediante a vivência dentro dos ritos realizados pelo templo - a utilização de posturas e movimentos corporais (danças) e respiração (antes e ao longo dos movimentos) que viabilizam o processo do transe e canalizam energias de caráter positivo a serem integradas no complexo orgânico/espiritual do médium.

Práticas a serem efetuadas dentro do rito, bem como de maneira particular - utilização de ervas (como banhos e defumações), de cantos, evocações e orações (pontos cantados), de oferendas com elementos naturais (flores, frutos, água, doces), de velas e incensos.

Todos estes instrumentos ritualísticos objetivam ser veiculadores de energias curativas e desvincular-nos de irradiações negativas, reestruturando nosso organismo, por meio da harmonização de suas estruturas sutis.

O saber espiritual contido nas lides umbandistas é grandioso e engrandece-nos a cada novo passo dado em direção ao esclarecimento e à compreensão de como cada prática ritualística, cada simbolo presente no templo, cada detalhe de uma gira é carregado de todo um complexo de significados e de uma memória coletiva.

 
Vemos então, a grandiosidade do conhecimento transmitido por nossos Orixás, intermediados pelas Correntes de Guias e Protetores, os quais acessam e integram a nossa consciência a porção de luz do entendimento, da gratidão e plenitude passíveis de vivenciadas ao nos relacionarmos com as irradiações positivas e curadoras desta egrégora da Umbanda, sabedores de que nossa experiência religiosa produzirá no íntimo de cada um de nós, os frutos do conforto, da segurança interior e serenidade da alma diante da Vida!

Saravá a todos!

Bibliografia Consultada:
Costa-Rosa, Abilio da (2008). Práticas de cura místico-religiosas, psicoterapia e subjetividade contemporânea (artigo científico) 
Pereira, Daniela Martins (2008). Experiência religiosa da fé e desenvolvimento humano (artigo científico)
Filho, A.M.P.;Junior,A.L.S.(2008). Religião e Cura: Uma interpretação (artigo científico)
Jorge, Érica F.C.(2008). O embate entre medicina e múltiplas artes de cura no Brasil - A inovação da Umbanda frente a esses saberes (trabalho de conclusao de curso)
Jung, C.G (1978). Psicologia e Religião
Neto, Francisco Rivas (2003). Sacerdote, Mago e Médico: Cura e Autocura Umbandista


terça-feira, 22 de novembro de 2011

Saúde e Cura na Umbanda: Tratamento Espiritual


Por: Gregorio Lucio

A sociedade contemporânea possui, no tocante às terapêuticas médicas convencionais, seus paradigmas em torno das concepções advindas da biomedicina - por sua consequente expansão pelo mundo -, bem como pela evolução histórica do campo de saúde na maioria das sociedades (Giglio-Jacquemot, 2006).

Como consequência de seu processo histórico de evolução, a biomedicina passou a defrontar-se com realidades culturais diversas, as quais possuem em si também a proposta terapêutica de promover respostas aos estados de doença e aflição vividos pelo ser humano. Isso fez com que surgissem várias formas de ajustamento com sistemas terapêuticos não biomédicos (Giglio-Jacquemot, 2006).

Entram aí, as terapêuticas religiosas que visam o bem-estar da criatura humana, em sua dimensão biológica-psicológica e, consequentemente, espiritual. Trataremos a respeito da terapêutica umbandista.
Nas práticas umbandistas visamos interpretar a doença segundo uma "semiologia espiritual" (Mantovani, 2006), sem desconsiderar a ótica da medicina convencional, no entanto, utilizando-nos de elementos simbólicos pertinentes ao nosso universo religioso.

Dessa forma, a ótica umbandista enfoca o entendimento do processo doentio interessando-se pelos mecanismos que irão influenciar na dimensão espiritual do indivíduo, independentemente se a sua causa dá-se por questões de ordem "material" ou "espiritual".

Essa assertiva implica numa compreensão de que tanto a dimensão corpórea, quanto a dimensão espiritual estão interligadas numa relação profunda, cujos mecanismos de saúde-doença são indissociáveis, corroborando, por tanto, com a realidade do tratamento espiritual como sendo complementar à terapêutica médica convencional.

"Aspectos como fé, oração e ritual são elementos importantes para o trabalho dos curadores". (Andrade , 2005)

Os elementos do rito e das práticas espirituais efetuados no tratamento dentro do contexto umbandista, visam restabelecer o equilíbrio (homeostase) entre as energias do complexo orgânico (corpo físico) e as do ser espiritual nele encarnado (Espírito).

Cremos na realidade manifesta da Individualidade como sendo um complexo de energias que transitam em diferentes níveis dimensionais, as quais definem e delimitam-nos como seres existentes no tempo e no espaço, embora nossa origem (de procedência divina) esteja situada além do universo cognoscível.

Sendo assim, todos os recursos terapêuticos utilizados (passes, orações, banhos, benzimentos, defumações, etc), visam a reordenação das energias do Ser, uma vez que os estados doentios propiciam com que o indivíduo irradie de Si energias de caráter deletério, tornando-o "aberto" à absorção de cargas negativas que resultariam por agravar suas condições físicas ou psíquicas, até mesmo deixando-o ao alcance de entidades espirituais de caráter perturbador, comprometendo ainda mais sua existência.

Os elementos simbólicos e a linguagem ritual presentes no sistema de tratamento do doente ao longo das giras, trazem em si impregnadas as irradiações benéficas e salutares da natureza e do mundo espiritual, propiciando a integração destas no organismo e psiquismo do paciente, tornando-o suscetível à renovação e recuperação da saúde.

Lévi-Strauss, ao analisar o sistema terapêutico e de cura dentro de contextos religiosos similares aos experienciados na Umbanda, cunhou o termo eficácia simbólica  ao observar os resultados positivos das práticas de cura espiritual.

A eficácia simbólica (Lévi-Strauss, 1985) das práticas populares de saúde, traduziria-se no processo pelo qual o indivíduo-médium (curador) levaria o indivíduo-doente a significar seus estados de mal-estar, manipulando os elementos simbólico-religiosos presentes no rito. No caso do rito umbandista seriam os pontos riscados e cantados, alguidares, guias, defumações, ervas, banhos, etc. Tudo isso de maneira a fazer com que o estado doentio possa ser identificado dentro deste contexto específico  e a partir daí seja racionalizado, equacionando-o. Seria, enfim, um processo de transformação na percepção do indivíduo-doente a respeito daquilo que este entenderia como sendo "a doença", proporcionando uma passagem para um contexto de saúde, de ressignificação.

Se por um lado essa concepção do processo de adequação psicológica faculta a abertura do indivíduo a novos contextos de vivências que o possibilitarão  restabelecer suas condições de saúde, não podemos negar, como umbandistas, a realidade do mundo espiritual que atua sobre o ser ali encarnado, cercando-o de um campo protetor e curativo, que auxiliará no tratamento médico convenientemente adotado pelo paciente, facultando sua gradativa melhora e a compreensão das situações vivenciadas mediante a realidade da doença, fornecendo-lhe recursos criativos para lidar com tal evento.

Isso por que cremos, como espiritualistas que somos, que o Ser é o somatório de todas as suas experiências vividas ao longo de sua jornada como Espírito em transformação, cujos nossos passos nas sendas do passado trouxeram-nos consequências mais ou  menos felizes, gravando-se em nosso interior e tornando-se portas e janelas abertas para que neste presente pudéssemos contemplar nossas limitações e potencialidades de desenvolvimento, incidindo inclusive nas predisposições a determinadas doenças que trazemos em nosso código genético, as quais verificar-se-ão em nossa jornada atual a depender de nosso livre-arbítrio e de nossas necessidades de reajustamento.

Por último, lembraremos que nem sempre a cura da doença física ou psíquica é possível, pois que a cada indivíduo são dadas as circunstâncias que o situarão diante da oportunidade sempre renovada de voltar o olhar para seu mundo interior, perscrutando sua consciência em busca das causalidades de seu estado atual ou das possibilidades de ajuste e adaptação saudável frente à situação que se afigura real, indicando-lhe a iminência de sua própria desencarnação.

Lembremos que nunca nos furtaremos aos compromissos que nos couber arcarmos ao longo de nossas existências, pois que de outra forma, quando vinculados ao processo doentio como meio de expiação, estaríamos simplesmente saindo de uma doença para mais adiante cairmos em outra,  uma vez que as Leis Divinas são imutáveis e inamovíveis.

Entregando-nos ao contato terapêutico com os Guias de Luz, os quais "arriam" em nossas coroas durante as nossas giras, integraremos em  nosso patrimônio íntimo a compreensão cada vez maior da Lei Divina que regula nossos caminhos existenciais, com a qual aprenderemos a nos ajustar e entender que saúde e doença são estados que primordialmente surgem da maneira como a consciência do indivíduo relaciona-se com a realidade, indo além da presença ou não de sintomas físicos ou psíquicos que caracterizem-nos.

Assim, há aqueles que, mesmo dotados de um organismo perfeito e faculdades psíquicas normais, entregam-se ao desânimo, a preguiça e à apatia diante da Vida, doentes...Também aqueloutros existem, por sua vez, que a despeito de padecerem sofrimentos inomináveis por conta das limitações e dificuldades impostas por uma saúde orgânica debilitada, tornam-se verdadeiros mananciais de alegria, ânimo e esperança, contagiando a todos ao seu redor, detentores que são, espiritualmente, da saúde daquele que se ilumina por meio das situações provacionais.

   
Buscando o auxílio e o esclarecimento junto aos Mentores de Aruanda Maior, compreenderemos, então, a inteireza das Leis Kármicas que visam o reajuste do Indivíduo perante a Vida e amadureceremos o entendimento da máxima do Cristo, quando o Mestre nos promete o Alívio ao invés da Cura:

"Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados e Eu vos aliviarei" (Mateus, 11-28:30).   


Saravá a todos!


Bibliografia Consultada:
Andrade, J.T (2010). Ritos terapêuticos entre rezadores no Grande Bom Jardim, em Fortaleza: persistência dos saberes comunitários em saúde (artigo científico).
Zangari, Wellington (2008). Consciência, Saúde e Psicologia Anomalística: o caso das interações anômalas de ação fisiológica à distância (artigo científico).
Giglio-Jacquemot, Armelle (2006). Médicos do Astral e Médicos da Terra. As relações da Umbanda com a Biomedicina (artigo científico, Revista Mediações).
Jorge, E.F.C. (2008). O embate entre Medicina e múltiplas artes de cura no Brasil - A inovação da Umbanda frente a esses saberes (trabalho de conclusão de curso).
Mantovani, Alexandre (2006). A construção social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um terreiro de umbanda na cidade de Ribeirão Preto - SP (tese de mestrado).

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Saúde e Cura na Umbanda



Por: Gregorio Lucio

Cada prática terapêutica obedece a uma concepção a respeito do ser humano. Na Umbanda, os aspectos do binômio saúde-doença são identificados por meio de interpretações fornecidas pelas concepções próprias acerca da realidade existencial dos seres, estando vinculadas a uma linguagem (verbal e não-verbal) e a uma simbologia características, as quais proporcionam a identificação dos estados doentios e auxiliam no tratamento do paciente, tornando-se uma forma criativa e complementar da terapêutica médica convencional.

Na Umbanda, entendemos a Individualidade como sendo essencialmente de natureza Espiritual, vinculada às experiências que esta tenha realizado ao longo de seu périplo carnal (sucessivas encarnações), tendo como resultado de suas vivências anteriores (se mais ou menos felizes) as disposições que irão influenciar, em termos de saúde-doença, a sua presente encarnação.


Soma-se à isso, a compreensão umbandista de que a Individualidade Espiritual - a qual somos cada um de nós - manifesta-se como parte integrante de uma estrutura de relação existencial além de Si-mesma. De tal sorte que o ser humano, de maneira particular, está associado aos seus ancestrais espirituais e divinos, como sejam seus Guias, Protetores e Orixás.
Assim, as vivências psíquicas do indivíduo resultam não somente daquilo que seria próprio de um sujeito portador de uma consciência centrada somente em si-mesmo, mas também como estando [a sua consciência] situada num sistema mais amplo, sujeito a influências e atuações de forças de origem transcendente, provindas do mundo espiritual, por meio dos seres extra-físicos com as quais esteja vinculado.

É uma demanda comum aos templos de Umbanda espalhados pelo país, a das pessoas portadoras dos mais variados problemas, na área da saúde ou social, as quais buscam o auxílio desta religião para a solução de suas queixas.

"No Brasil, o sincretismo de invocação religiosa, os remédios, as simpatias, as rezas, fazem parte de um agir coerente em busca da cura" (Andrade, 2005).

A precariedade das condições de vida e acesso aos meios de tratamento das doenças, no passado, bem como a sempre presente necessidade interior de ser entendida não somente como um complexo orgânico, mas principalmente como individualidade transcendente/espiritual, levaram a grande massa de pessoas a buscarem o socorro aos curandeiros, rezadores, benzedeiros, médiuns (entre outros) de todas as épocas de nossa sociedade.

No caso da Umbanda, o terreiro é um dos pontos de vivência fundamentais na lide dos processos de saúde e cura do indivíduo. Os templos religiosos fazem-se pontos centrais no processo de apoio na busca do tratamento terapêutico. "Tais entidades e suas crenças servem de base e de fator disseminador destas práticas de cura, assim como estas as compõem fazendo parte de seus principais rituais e práticas" (Andrade, 2005).


Sendo assim, a busca pelo contato com as Entidades Espirituais, Guias e Protetores da Corrente Astral de Umbanda configura-se como o recurso direto para a solução e a cura dos males variados na vivência cotidiana dos pacientes. No rito umbandista, os seres vindos dos planos elevados do mundo espiritual (a Aruanda), chegam à Terra (o terreiro) para trabalharem a favor dos necessitados, os quais podem relacionar-se de maneira direta com estes, dirigindo-lhes seus pedidos e rogativas.

Cremos, como umbandista, que os desequilíbrios manifestos no complexo psíquico/orgânico do indivíduo surgem em decorrência das disfunções de ordem energética entre seus corpos espirituais, ocasionando a quebra da homeostase, efetivando-se em desarmonias variadas. Tal mecanismo pode ocorrer por conta de processos próprios do indivíduo, mediante ocorrências em sua vida cotidiana, em seus aspectos psicológicos (complexos psíquicos, conflitos existenciais, depressão, stresse, etc), bem como por aqueles de ordem orgânica (males de ordem genética ou ocasionados por hábitos e vícios maléficos à saúde, exposição a agentes externos, etc.). Da mesma forma, também a vinculação à entidades espirituais de caráter negativo e perturbador (os chamados obsessores, quiumbas, "encostos"), também surgem no rol das circunstâncias que podem levar a desequilíbrios na área da saúde, segundo a concepção umbandista.

Dentro deste contexto religioso, verificar-se-ão as várias formas de tratamento e cura promovidos pelas práticas umbandistas, como sejam os "benzimentos", os "passes", as "desobsessões", o "transporte", os "ebós", os "banhos de folhas", as "defumações", entre outros. 

A medicina convencional, primordialmente, irá valer-se do tratamento dos sintomas por meio da diagnose e prognose adequadas, administrando remédios e terapêuticas variadas com o intuito de dissipar a doença, contribuindo com a melhoria na qualidade de vida do paciente.

A utilização de duas angulações diferentes a respeito da realidade do indivíduo associa modalidades diagnóstico-terapêuticas distintas, mas complementares.

Por fim, diremos que todo o Rito de Umbanda, é uma prática de cura, por meio da qual nossos Guias e Protetores, no simples ato de sua incorporação, trazem ao terreiro suas irradiações de Saúde e Harmonia, integrando-as no psiquismo e no organismo do médium, enquanto percorrem o congá, dançando ou caminhando, descarregam e limpam o ambiente, assim como atraem para si as entidades "negativas" - trazidas para tratamento -  e desfazem os acúmulos de energias deletérias que porventura tenham se agregado por conta da irradiações de pensamento de todos quantos estejam presentes ao rito em condições de sofrimento e perturbação.

Toda a gira de Umbanda é curativa por excelência, pois coloca-nos em contato com o Divino, fonte próspera e inesgotável de Felicidade e Saúde, da qual cada um se alimentará mediante as suas possibilidades de momento e condições de assimilação das experiências no campo do Sagrado, junto aos nossos Orixás que irradiam sobre todos nós sua cobertura em forma de amor e força interior para prosseguirmos em nossa jornada.

Saravá a todos!


Bibliografia Consultada:
Andrade, J.T (2010). Ritos terapêuticos entre rezadores no Grande Bom Jardim, em Fortaleza: persistência dos saberes comunitários em saúde (artigo científico).
Zangari, Wellington (2008). Consciência, Saúde e Psicologia Anomalística: o caso das interações anômalas de ação fisiológica à distância (artigo científico).
Giglio-Jacquemot, Armelle (2006). Médicos do Astral e Médicos da Terra. As relações da Umbanda com a Biomedicina (artigo científico, Revista Mediações).
Jorge, E.F.C. (2008). O embate entre Medicina e múltiplas artes de cura no Brasil - A inovação da Umbanda frente a esses saberes (trabalho de conclusão de curso). 
Mantovani, Alexandre (2006). A construção social da cura em cultos umbandistas: estudo de caso em um terreiro de umbanda na cidade de Ribeirão Preto - SP (tese de mestrado).

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Incorporação - Parte 5: Visões do Transe de Possessão



Por: Gregorio Lucio


Finalizaremos com este post nosso compêndio a respeito do fenômeno da Incorporação dentro das lides umbandistas, esperando que - embora nossa intenção não seja a de esgotar o assunto - o conteúdo expresso neste conjunto de cinco textos possa ter contribuído com o acréscimo de conhecimentos de nossos leitores ou pelo menos tenha despertado o interesse por aprofundar o Saber e aprimorar sua Prática.

Traremos agora, por fim, uma visão à parte daquela já constituída nos quatro textos anteriores, nos quais abordamos o fenômeno da Incorporação enfocando suas implicações psíquicas, orgânicas e principalmente espirituais na vivência do médium umbandista.

Estabeleceremos colocações que nos possibilitarão identificar as interpretações dadas ao fenômeno do transe de incorporação (conhecido também como transe de possessão) no curso da história de nossa sociedade, na qual a Umbanda encontra-se inserida, de maneira que possamos contemporizar a identidade de nossas vivências espirituais e entendê-las como plenamente válidas dentro do nosso contexto religioso e social.

O fenômeno do transe foi visto durante muito tempo como um estado doentio e demoníaco. Na Idade Média pessoas que praticavam o transe (mesmo aquelas que se viam "tomadas" pelo fenômeno, de maneira involuntária) eram vistas como praticantes de bruxaria, ritos pagãos ou como estando sob possessão demoníaca e de espíritos malignos, etc.

Já no século XIX, com o surgimento da Psicologia e da Psiquiatria, afora os estudos já realizados pela Medicina a esse respeito, foram estabelecendo-se outros termos para adjetivarem o fenômeno do transe de possessão, sempre com a intenção de buscar “explicações fisicalistas que na maioria das vezes, serviram para estabelecer distâncias entre um saber popular e o conhecimento de elites profissionais, sendo também estratégia de afirmação política de disciplinas como a psiquiatria”(Gonçalves, 2008).


Neste contexto, o estudo das questões a respeito dos mecanismos da mente, e até mesmo a sua própria essência, deixaram o campo filosófico (Descartes e sua discussão da dualidade mente-corpo) para irem de encontro às concepções da fisiologia. Surgem aí, o Mesmerismo, a Frenologia, a Fisiognomia, a Etnologia, a Antropologia e, posteriormente, a Sociologia (Mateo apud Gonçalves, 2008).

A inclusão do fenômeno do transe de possessão no rol das “histerias” (durante o auge da escola de Charcot em Salpêtrière, na França), Pierre Janet com sua teoria a respeito das “personalidades duplas” e, mais recentemente, na quarta edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder (DCM-IV), aparecendo como Transtorno de Possessão, dentro do grupo de Transtornos Dissociativos, trouxeram uma dimensão tendente a classificar os fenômenos de caráter complexo, como os fenômenos de transe mediúnico, como entidades nosológicas (denominação referente à doenças).

No Brasil, Henrique de Brito Belford Roxo (1877-1969) chegou a criar uma nova classe diagnóstica, conhecido como "delírio espírita episódico", que foi apresentada em uma conferência médica realizada em 1936, em Paris. O psiquiatra paulista Francisco Franco da Rocha, tratará também a respeito da "loucura espírita". Igualmente, os antropólogos Raymundo Nina Rodrigues (1900), Manoel Querino (1955) e Arthur Ramos (1940), irão utilizar-se das informações e conceitos transmitidos pela psiquiatria (notadamente a escola francesa) para explicar o fenômeno do "transe de possessão" como estando no rol de doenças psiquiatricas, como a "histeria em massa". 

No entanto, as experiências anômalas (EA) e os estados alterados de consciência (EAC) são descritos em todas as civilizações de todas as eras, constituindo-se elementos importantes na história das sociedades (Almeida, 2002).

Herkovits (1967) trouxe, em seus estudos antropológicos a respeito da mediunidade, uma dimensão social a respeito da prática do transe, deixando de ser caracterizado como sendo de caráter psicopatológico. Com Roger Bastide, René Ribeiro, Pierre Verger e Octavio da Costa Eduardo, a prática do transe mediúnico (também chamado de “transe místico”), passa a ter um valor e uma função social, representando em si uma “metáfora” cultural, pela qual expressariam-se os sentidos de protesto de uma determinada coletividade (composta em sua maioria por indivíduos marginalizados ou oprimidos) em oposição a ordem social vigente.


Contemporaneamente, temos novamente a abertura das discussões em torno da realidade e da validade das vivências espirituais e dos estados de transe, como sendo experiências comuns no cotidiano das pessoas em todo o mundo e, mais especificamente, como estando fortemente ligada à identidade cultural da sociedade brasileira. A psicologia, a psiquiatria, a neurociência, a antropologia, entre outras disciplinas acadêmicas, voltam novamente suas atenções ao estudo das experiências religiosas, enfocando quais as suas interferências e em que níveis estas se dão na saúde e na relação social do indivíduo que as experimenta.

Fernando Câmara (2005), embora ainda classifique o transe de possessão (incorporação) como sendo um estado de caráter doentio, identifica que a prática do transe realizada dentro de um contexto cultural que o perceba como sendo natural e estabelecendo disciplinas e sistemas adequados para a sua manifestação, propicia a liberação das forças criativas do indivíduo, de maneira que este possa significar a realidade mais ou menos opressiva, na qual o sujeito vê-se inserido, além de facultar que este trabalhe com as pressões psíquicas, extravasando-as em um regime controlado, exercendo, portanto, um caráter regulador da vida psíquica. Transeterapia, é a denominação cunhada por esse autor para denominar o efeito da prática reguladora do transe.

Embora as últimas qualificações a respeito dos fenômenos espirituais ainda tratem de maneira patologizante as vivências do transe de incorporação, a adoção de uma perspectiva também social no âmbito antropológico abre campo para discutir-se a respeito das hipóteses espirituais e transcendentes envolvidas nestas manifestações (a realidade do fenômeno como sendo provocado pela interferência de uma mente externa ao indivíduo/médium). Assim, entenderemos que o fenômeno do transe é visto como um estado dissociativo da mente - no qual há uma quebra da estrutura da identidade do indivíduo - somente quando este ocorrer fora do contexto religioso da pessoa.

É natural que realmente durante o efeito do transe de incorporação haja, momentaneamente, uma dissociação psíquica no indivíduo, uma vez que este deverá "ceder" ao acesso de outra mente (a mente do Espírito, individualidade extra-física), para que possa ocorrer o fenômeno. No entanto, dentro do contexto e do sistema religioso em que tal ocorrência verifica-se, esta não derivará para estados patológicos da mente, ao contrário, resultando num processo de intensificação da identidade pessoal, de bem-estar e efeitos positivos sobre a saúde psíquica e orgânica do indivíduo, ressaltando seu potencial criativo e plenificador.

O transe na umbanda não é nem estritamente individual (como no kardecismo) nem propriamente representação mítica (como no candomblé)...(Barros).

Sendo assim, segundo nossa visão de adepto umbandista, a prática do transe de incorporação dentro das práticas espirituais verificadas em nossos templos religiosos, faculta a integração do indivíduo em um processo de ressignificação de sua realidade, em diferentes aspectos (individual, social, psíquico e espiritual), incentivando-nos a refletir quais os resultados positivos de tal experiência na conduta pessoal daquele que experimenta e vive neste círculo religioso.

As discussões, cada vez maiores, abertas pela Organização Mundial de Saúde envolvendo a relação religiosidade x saúde, nas quais foram surgindo e mantendo-se, atualmente, estudos versando a respeito de como a prática religiosa pode interferir na saúde e no bem-estar do homem são importantes para que pensemos a respeito do quanto podemos absorver, em termos de possibilidades de engrandecimento e fortalecimento interior, de nossa vivência particular como adeptos umbandistas.

Uma vez que sigamos em nosso processo de conscientização da realidade que nos cerca e de nossas próprias capacidades criativas como Espíritos, ligados às Leis de Umbanda, colaborando para resplandecer a luz de nossos Guias e Orixás para tudo e todos que nos cercam, colocando-nos como cidadãos exemplares, pais e mães responsáveis, profissionais éticos e religiosos fraternos, contribuiremos para que joguemos luz às dúvidas que ainda cercam os fenômenos espirituais, eliminando aos poucos de nossa sociedade o preconceito e dando mostras do quão poderosas e profundas são nossas Leis, nosso Saber e nossa Prática.

Saravá as Leis de Umbanda!

Saravá os nossos Guias e Protetores!

Saravá a todos os Umbandistas!


Referências:

Zangari, Wellington (2007). Experiências anômalas em médiuns de Umbanda: uma avaliação fenomenológica e ontológica (artigo científico)
_______________ (2001). Estudos Psicológicos da Mediunidade: uma breve revisão (artigo científico)
Câmara, Fernando Portela (2005).  A função reguladora do transe e possessão ritual nos cultos espiritistas brasileiros
Rizzi, Nilse Davanço (1997). Visões do Transe Religioso (artigo científico)
Almeida, Alexander Moreira; Neto, Francisco Lotufo (2002). Diretrizes metodológicas para investigar estados alterados de consciência e experiências anômalas (artigo científico)
Chibeni, Silvio Seno; Almeida, Alexander Moreira (2007). Investigando o desconhecido: filosofia da ciência e investigação de fenômenos "anômalos" na psiquiatria
Prandi, Reginaldo (1990). Modernidade com fetiçaria: Candomblé e Umbanda no Brasil do século XX (artigo científico)
Almeida, Angélica A.S.; Oda, Ana Maria G.R.; Dalgalarrondo, Paulo (2007). O olhar dos psiquiatras brasileiros sobre os fenômenos de transe e possessão (artigo científico)
Barros, Sulivan Charles (----). A possesão como expressão da voz subalterna: o caso da Umbanda (artigo científico).
Gonçalves, Valéria Portugal (2008). A naturalização dos fenômenos sobrenaturais e a construção do cérebro "possuído": um estudo da medicalização do transe e da possessão no século XIX (tese de mestrado)
Capellari, Marcos Alexandre (2001). Sob o olhar da razão: as religiões não católicas e as ciências humanas no Brasil (tese de mestrado)
Código Internacional de Doenças (CID 10 /F 44.3) - Estados de Transe e Possessão.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Incorporação - Parte 4: A Ascensão da Consciência.



Por: Gregorio Lucio

Seguindo nosso conjunto de escritos  a respeito do estudo do transe de Incorporação como um recurso fundamental para a vivência espiritual do adepto umbandista, teceremos algumas considerações a respeito de como esta prática faculta o desabrochar da consciência do médium, aprimorando suas relações intrapsíquicas e seu consequente comportamento perante o Outro, corroborando sua transformação espiritual como Individualidade Transcendente (Espírito).


O contato do médium com seus Guias e Protetores efetua-se por meio de fluxos de pensamento e idéias, os quais emergem à consciência dentro do seu cotidiano, e não somente em momentos de vivências psíquicas características de um estado de êxtase místico, como muitas vezes dá-se a impressão numa análise mais superficial. Embora os níveis de experiênciamística e fenômenos espirituais possam dar-se em diferentes condições (de uma leve intuição a um transe extático), é no dia-a-dia em que irão promover-se as relaçõesmentais e psíquicas entre a Individualidade medianeira e a IndividualidadeEspiritual, a qual se lhe afigure como Guia ou Protetor.

Partindo das experiências do indivíduo ainda em EducaçãoMediúnica, entendemos que a conjunção de pensamentos e sensações parecerão assomar-se de maneira confusa, causando insegurança e dúvidas várias. Um sentido de “perturbação” poderá ser experimentado, inclusive incidindo, de maneira mais ou menos incômoda, em sintomas físicos e psíquicos, conforme já tratado em artigos anteriores (ver: Sensações Mediúnicas Parte I...). Tal ocorrência verifica-se por conta da abertura do canal de sensibilidade próprio ao médium, o qual encontra-se ainda em “estado bruto”, transitando da inconsciência à consciência. Aliás, adimos que a grande maioria dos seres humanos transitam em estados mediúnicos mais ou menos acentuados, entretanto, por conta destes ainda estarem situados numa vivência inconsciente, embora o sujeito ressinta-se de seus efeitos, seu comportamento apontar-se-á como algo doentio e inquietante em determinados aspectos, influenciando sua saúde física e emocional.

Lembramos, novamente, não ser a Mediunidade a causa dos processos de perturbação vividos pelo médium, no entanto, esta funcionará como elemento amplificador destes estados.

À medida em que o indivíduo/médium apercebe-se e toma conhecimento de seus "estados mediúnicos", buscando dar-lhe significado proveitoso, ao mesmo tempo em que acerca-se de sua realidade, suas elaborações poderão tornar-se, aos poucos, integradas à sua consciência, facultando o amadurecimento de sua condição psicológica e o aprimoramento de sua Individualidade Espiritual.

A apreensão dos registros e experiências que podem integrar-se na consciência do médium, ao longo de sua vivência mediúnica, é de caráter profundamente particular e não pode ser explicada em sua totalidade utilizando-nos da racionalidade e intelectualidade. Não pode ser transmitida e abarcada por conceitos, conforme nos diz Otto (2005), ao referir-se às experiências religiosas profundas: 

“Em boa verdade não se transmite no sentido próprio da palavra: não pode ensinar-se, apenas se pode fazer despertar no espírito. Por vezes diz-se a mesma coisa da religião em geral e no seu conjunto. Mas é um erro. Muitos elementos  que contém podem ensinar-se, isto é, transmitir-se por meio de conceitos, traduzir-se numa forma didática, exceto precisamente o sentimento que lhe serve de fundo e de infra-estrutura. Só pode ser provocado, excitado, despertado”.

Ainda segundo Otto, a transição dos conteúdos próprios do fenômeno espiritual colocam-se numa relação entre elementos racionais e irracionais. O equilibrio entre ambos os elementos mantém a possibilidade latente das vivências religiosas profundas (irracionais), significando-as de maneira a não perderem-se na irracionalidade total, mergulhando-as no fanatismo.


Quando dizemos - transportando o acima exposto para a prática umbandista - que a relação mediúnica faz com que o médium acesse conteúdos próprios, de caráter positivo e salutar, bem como dos seus Guias e Protetores, focalizamos o fato de que há um processo em execução de "despertar" aquilo que está latente no inconsciente do médium, mais especificamente na região "transmarginal", como conceituaria William James, onde jazem todos os conteúdos plenificadores e também aqueles de caráter perturbador, próximos à consciência. 

Toda essa gama de conteúdos que acessam à consciência do indíviduo, manifestando-se por meio de símbolos (nos sonhos e nos estados de transe, por exemplo), contém em si registros de todas as experiências que a Individualidade realizou no seu périplo de desenvolvimento como Espírito, os quais afiguram-se-lhe como sendo as chaves que abrirão as portas interiores do Si para o desvendar de suas necessidades de (re)ajuste perante a Vida, bem como de suas infinitas possibilidades de realização e felicidade.

Salientamos que a experiência do transe de Incorporação, conforme trata a proposta do presente texto, envolve a integralidade da percepção psíquica e mental, bem como dos sentidos físicos (corpo).

No processo de iniciação (desde a educação mediúnica até a coroação) o “corpo” como sujeito da experiência objetiva do transe, modifica sua forma e significação.

É um processo natural que passará a desenvolver-se na vida cotidiana do adepto, o qual iniciará uma nova condição perceptiva de sua realidade espiritual. A relação com o corpo é a primeira etapa, a qual estará presente e participará de todas as demais, passíveis de desenvolverem-se no futuro (vivências psíquicas e mentais de caráter profundo). Sempre as sensações corporais acompanharão a vida mediúnica do indivíduo.

Será por meio do corpo que o indivíduo perceberá as influências recebidas do mundo espiritual, num primeiro momento. Sensações variadas e ao mesmo tempo envolventes permitem que este identifique seus estados mediúnicos, fomentando sua frequência ao templo religioso, com a finalidade de praticar e educar-se na vivência do transe.

Adiante neste processo de Ascensão da Consciência, realiza-se a construção da Identidade do adepto, a qual situa-se em diferentes contextos (individual, espiritual, social e ritual). Ou seja, ao longo da vida como médium nas lides de Umbanda, o indivíduo constituirá uma relação de identidade própria. Identidade essa que permanecerá vinculada a sua percepção do corpo, pois é direcionada para o sentido de sacralização deste. Nos ritos iniciáticos, o médium vê que seu corpo, aos poucos, é convergido para a relação com o mundo espiritual, devido a vinculação de "partes simbólicas" fundamentais na vivência subjetiva do indivíduo, com as entidades espirituais que lhe servem de Guias e Protetores. O "dono da cabeça", o "dono das mãos", etc., são termos que surgem da experiência simbólica, psiquica e espiritual vividas pelo médium ao longo do seu processo de iniciação. Tal processo tem como caráter a expansão da consciência mediúnica na relação com o mundo espiritual e a sua consequente sensopercepção por meio das estruturas orgânicas, pelas quais manifesta-se o espírito encarnado (médium).

Primeiramente, por reconhecer-se como Espírito em relações diversas com o mundo espiritual. De igual forma, o médium também definirá sua pertença ritual, onde terá "assentados" (firmados) os seus Orixás, Guias e Protetores, com nomes, pontos e firmezas estabelecidos, bem como verificar-se-á a sua identificação social, como sujeito participante de uma coletividade específica (do templo religioso, o terreiro), com cujos demais membros este comungará e trocará irradiações (em sua coroa mediúnica) colhendo em campo íntimo todo o Bem a que se proponha doar de Si.

Conforme sua jornada mediúnica junto aos Guias e Protetores da Corrente Astral de Umbanda, o médium irá assenhoreando-se de um grau de percepção maior a respeito de sua condição espiritual, na qual o Orixá (e seu preposto, o chamado guia-de-frente) traduz-se, pela mística de Umbanda, como sendo a realidade última do próprio espírito/médium. Ou seja, o médium adquirirá consciência de que ele é o próprio Orixá e que sua essencialidade divina encontra-se no seu interior, por cujos influxos destes conteúdos de caráter numinoso este poderá ascender às esferas maiores do mundo espiritual.


No entanto, o ínterim deste processo é marcado por uma série de desafios íntimos que o medianeiro deverá vencer, com paciência e honestidade para consigo mesmo, uma vez que deverá equipar-se de maturidade e compreensão para defrontar-se como seus próprios dramas e conflitos, vencendo-os aos poucos, de maneira a ultrapassar as sombras de sua própria individualidade e rumar para a luz de sua condição divina, processo pelo qual jornadeamos e lograremos conquistar no suceder de várias vidas.


A relação com o Outro, o qual apresenta-se como Individualidade Espiritual e Transcendente, portanto, à parte do psiquismo do médium, encaminha a possibilidade de entendermos a Divindade não como um Ente desvinculado do que somos, mas, ao contrário, como estando também em nós a essencialidade divina, a qual propicia-nos galgar os degraus desta "escada de Jacó" cuja escalada nos alçará aos níveis mais amplos e plenos de entendimento da Vida e de nossa realidade existencial como Espíritos Imortais, constituindo parte do Divino.

Saravá a todos!

Referências:
Bárbara, Rosamaria (2002). A Dança das Aiabás (tese de doutorado)
Rotta, Raquel Redondo (2010). Espíritos da mata: sentido e alcance psicológico do uso ritual de cabolcos na Umbanda (tese de mestrado)
Leme, Fabio Ricardo (2006). O uso do imaginário nos estudos afro-brasileiros e no culto umbandista (tese de mestrado)
Otto, Rudolf (2005). O Sagrado
James, William (1995). As variedades da experiência religiosa
Jung, C.G (1993). O Homem e seus Símbolos


sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Incorporação - Parte 3: A relação Médium/Guia na Umbanda


Por: Gregorio Lucio

A perspectiva metafísico-religiosa do universo umbandista caracteriza-se por estabelecer uma relação de interdependência dos seres desencarnados com os encarnados, implicando não só numa constante influência dos primeiros nas vivências psíquicas e relações sociais dos segundos, mas também no trânsito do sujeito psíquico/biológico (médium) pela dimensão espiritual, cuja experiência possibilita ressignificar constantemente sua compreensão da Espiritualidade e ampliar seu campo de ação como medianeiro.

Esse discurso sagrado cultual, no qual os Espíritos Guias e Protetores concorrem como "recursos" significantes da vivência religiosa do umbandista,  faculta um campo de aprimoramento da Individualidade expressivo, sendo "[...]capaz de fortalecer laços interpessoais e intergeracionais e de promover concomitantemente inclusão social e integração psíquica"(Pasqualin, 2009)... aditaríamos, de nossa parte, a Ascensão Espiritual, como sendo o corolário da relação com os Guias e Protetores de Aruanda.

Estabelecemos nos dois parágrafos acima as premissas de que nos utilizaremos para dissertar a respeito deste novo texto, o qual trata do fenômeno do transe de Incorporação sob a perspectiva da relação Médium/Guia Espiritual.

Temos que a construção de um espaço interior e sagrado ao médium, por conta da prática da Incorporação e da relação dialógica (Carvalho, 1998) com os Guias Espirituais, é a constante na prática espiritual dentro da Umbanda, uma vez que nesta forma de religiosidade o acesso à dimensão do Sagrado não é realizada por meio de um pontífice ou um sistema doutrinário que codifique e cerceie as possibilidades de contato e relação com o universo espiritual, o qual pode ser interpretado de maneira plural, de acordo com as possibilidades e vivências próprias daquele que experimenta o transe.

Esta relação de constante diálogo entre médium-Guia, implica na utilização de determinadas funções psíquicas do médium, aprendidas no seu contexto religioso (ou até mesmo aquelas inatas), para que faça-se a comunhão espiritual. Dentre estas funções, estão: concentração, meditação, reflexão, oração, intuição, inspiração, além, é claro, do próprio transe.

Por meio das funções citadas acima é que o médium percebe e registra o pensamento de seu Guia ou Protetor, com o qual permuta continuamente as suas energias psíquicas, co-relacionadas com a sua psique e com o cérebro físico, o qual funciona como modulador destas mesmas funções.

O envolvimento nas irradiações do psiquismo dos Guias, ocasiona o processo de manifestação de símbolos advindos do inconsciente do médium, no qual localiza-se uma instância limiar que perpassa e permeia as ocorrências de entrelaçamento mental, entre outras manifestações paranormais, como seja o chamado Inconsciente Superior ou Superconsciente, segundo a denominação própria da Psicologia Transpessoal.

A maneira como dão-se as manifestações espirituais dentro das Leis de Umbanda, depreendemos das simbologias pertinentes ao universo semântico desta religião, as formas pelas quais os Espíritos Guias e Protetores irão utilizar-se para a sua "passagem" e presentificação nos trabalhos espirituais: "caboclos", "pretos-velhos", "baianos", "marinheiros", "crianças"...

Estas formas simbólicas de apresentação da realidade espiritual, contidas no imaginário umbandista, são importantes para entendermos como estão estabelecidas as relações mais ou menos estreitas e afetivas entre o sujeito/médium e aquele que representa seu Guia ou Protetor. À maneira como estão consteladas as imagens simbólicas no inconsciente do médium, este terá relações psíquicas diferenciadas entre aquele "grupo" de Espíritos que compõem a sua coroa mediúnica. Assim é que, normalmente, muitos médiuns, apesar de possuírem um Guia que lhe seja o seu principal mentor, estabelecem com um segundo Guia de suas correntes uma relação mais estreita de parceria e afinidade.

O imaginário coletivo umbandista permeia o fluxo das correntes de pensamento, pela Lei de Afinidade, as quais são dirigidas ao médium pelo plano Espiritual, assim como, inversamente, são emitidas pelo medianeiro em direção àqueles que se lhe afiguram como orientadores e mentores.

Na medida em que o médium transita entre a sua instância psíquica objetiva e aqueloutra subjetiva, onde estão gravadas as suas experiências vivenciadas na prática do transe de Incorporação, este vai adquirindo consciência de Si, como Espírito Imortal e totalmente vinculado a tudo o que existe no mundo, visível ou invisível.

Ipseidade, implica na compreensão do caráter individual e único de cada ente, distinguindo-o de todos o outros. O centro da consciência, define-se como o menor ponto "no interior" da alma do médium, no entanto, capaz de o iluminar por completo à medida em que pratica a incorporação (Carvalho, 1998).

São breves as vivências espirituais, bem como os registros destas afiguram-se, a princípio, fugidios. No entanto, neste processo de percorrer o trajeto de ida ao seu mundo interior, poder-se-á aperceber da riqueza simbólica (psíquica) e espiritual com as quais aos poucos vai constituindo-se e amadurecendo, concretizando seu processo de transformação íntima, como experiência espiritual, a tão falada "evolução espiritual".

Os Guias e Protetores, ao mesmo tempo em que conservam-se como seres transcendentes e à parte do inconsciente do médium, são também, dentro do sistema simbólico da Umbanda, símbolos que o integram e potenciais interlocutores sociais (Lambek apud Rotta, 2010).

Dessa forma, "colocar o coração (o sentimento, o afeto e, por derivação, a própria entrega à entidade, que é realmente muito intensa nessa tradição religiosa)", faz-se na Umbanda como "a mais desenvolvida das funções espirituais" (Carvalho, 1998).


A vinda dos Guias Espirituais, fazendo sua passagem do mundo espiritual para o mundo terreno, por meio de sua "descida", consolida a chegada do divino no terreiro, tornando sagrado o corpo e a mente do médium neste instante, pois que acessa e domina a mente do sensitivo durante o transe,  mesmo que parcialmente. Isso faz com que o próprio médium integre-se à realidade espiritual e funda-se consciencialmente com o próprio Congá de seu terreiro (o espaço sagrado na Terra).

Cada médium que hoje trabalha com seus Guias e Protetores em seu terreiro, vivenciando a sacralidade do Congá, no qual fundem-se as Individualidades presentes num estado coletivo de fenômeno espiritual, revive no Rito a tradição praticada pelas gerações de médiuns e Guias que passaram pelo templo, reelaborando as  forças espirituais primevas (as irradiações), trazendo-as para o tempo atual e reencaminhando-as para todos aqueles que pertencem, ou pertenceram, às correntes Astral e Mediúnica daquele templo.

A vivência do Sagrado e do fenômeno espiritual na Umbanda possibilita ao médium que, ao estreitar relação com o mundo transcendente, este possa perceber as dimensões mais amplas da Vida, na qual a Individualidade que se É compreende-se como estando vinculada a um esquema maior, de ordem Divina, do qual tornamo-nos aos poucos conscientes, como um ponto de luz que ilumina ao redor de si num Universo maior do que a razão intelectiva pode alcançar.

A prática das diferentes funções psíquicas, desde a reflexão interior até o transe de incorporação, veicula na mente do médium a presença Daqueles vindos de dimensões maiores da Vida, facultando o acesso às instâncias inconscientes de sua própria Individualidade, identificando-o com seu Orixá (o Deus-em-Si) num processo de ascenção contínua para o seu centro psíquico, o Self, concretizando o seu amadurecimento emocional e seu consequente aprimoramento espiritual.

Outrossim, o convívio psíquico com as mentes dos Guias e Protetores, segundo a perspectiva umbandista, promove a estimulação dos conteúdos mais profundos e plenificadores do médium, sob cujas suas influências, de grande força emocional, este acrisola a sua personalidade sutilizando seus pensamentos, sua sensibilidade, sua emotividade, alcançando novas concepções daquilo que está em seu patrimônio psicológico/espiritual, bem como daquilo que é próprio do Outro com o qual relaciona-se, também merecedor de apreciação e respeito.


Saravá a todos!

Referências:


Carvalho, José Jorge de (1998). A Tradição Mística Afro-Brasileira (artigo científico)

Pasqualin, Flavia Adrea (2009). Modo de vida e vivência do morto na Tenda Espírita de Umbanda Pai Benedito (tese de mestrado).
Santos, E.C.M (1999). Preto-Velho: As várias faces de um personagem religioso. (tese de mestrado)
Leme, F. R (2006). O uso do imaginário nos estudos afro-brasileiros e no culto umbandista (tese de mestrado)
Rotta, Raquel R.; Bairrão, J.F.H.M (2010). Mulheres médiuns e caboclas espirituais (artigo científico)