segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Incorporação - Parte 4: A Ascensão da Consciência.



Por: Gregorio Lucio

Seguindo nosso conjunto de escritos  a respeito do estudo do transe de Incorporação como um recurso fundamental para a vivência espiritual do adepto umbandista, teceremos algumas considerações a respeito de como esta prática faculta o desabrochar da consciência do médium, aprimorando suas relações intrapsíquicas e seu consequente comportamento perante o Outro, corroborando sua transformação espiritual como Individualidade Transcendente (Espírito).


O contato do médium com seus Guias e Protetores efetua-se por meio de fluxos de pensamento e idéias, os quais emergem à consciência dentro do seu cotidiano, e não somente em momentos de vivências psíquicas características de um estado de êxtase místico, como muitas vezes dá-se a impressão numa análise mais superficial. Embora os níveis de experiênciamística e fenômenos espirituais possam dar-se em diferentes condições (de uma leve intuição a um transe extático), é no dia-a-dia em que irão promover-se as relaçõesmentais e psíquicas entre a Individualidade medianeira e a IndividualidadeEspiritual, a qual se lhe afigure como Guia ou Protetor.

Partindo das experiências do indivíduo ainda em EducaçãoMediúnica, entendemos que a conjunção de pensamentos e sensações parecerão assomar-se de maneira confusa, causando insegurança e dúvidas várias. Um sentido de “perturbação” poderá ser experimentado, inclusive incidindo, de maneira mais ou menos incômoda, em sintomas físicos e psíquicos, conforme já tratado em artigos anteriores (ver: Sensações Mediúnicas Parte I...). Tal ocorrência verifica-se por conta da abertura do canal de sensibilidade próprio ao médium, o qual encontra-se ainda em “estado bruto”, transitando da inconsciência à consciência. Aliás, adimos que a grande maioria dos seres humanos transitam em estados mediúnicos mais ou menos acentuados, entretanto, por conta destes ainda estarem situados numa vivência inconsciente, embora o sujeito ressinta-se de seus efeitos, seu comportamento apontar-se-á como algo doentio e inquietante em determinados aspectos, influenciando sua saúde física e emocional.

Lembramos, novamente, não ser a Mediunidade a causa dos processos de perturbação vividos pelo médium, no entanto, esta funcionará como elemento amplificador destes estados.

À medida em que o indivíduo/médium apercebe-se e toma conhecimento de seus "estados mediúnicos", buscando dar-lhe significado proveitoso, ao mesmo tempo em que acerca-se de sua realidade, suas elaborações poderão tornar-se, aos poucos, integradas à sua consciência, facultando o amadurecimento de sua condição psicológica e o aprimoramento de sua Individualidade Espiritual.

A apreensão dos registros e experiências que podem integrar-se na consciência do médium, ao longo de sua vivência mediúnica, é de caráter profundamente particular e não pode ser explicada em sua totalidade utilizando-nos da racionalidade e intelectualidade. Não pode ser transmitida e abarcada por conceitos, conforme nos diz Otto (2005), ao referir-se às experiências religiosas profundas: 

“Em boa verdade não se transmite no sentido próprio da palavra: não pode ensinar-se, apenas se pode fazer despertar no espírito. Por vezes diz-se a mesma coisa da religião em geral e no seu conjunto. Mas é um erro. Muitos elementos  que contém podem ensinar-se, isto é, transmitir-se por meio de conceitos, traduzir-se numa forma didática, exceto precisamente o sentimento que lhe serve de fundo e de infra-estrutura. Só pode ser provocado, excitado, despertado”.

Ainda segundo Otto, a transição dos conteúdos próprios do fenômeno espiritual colocam-se numa relação entre elementos racionais e irracionais. O equilibrio entre ambos os elementos mantém a possibilidade latente das vivências religiosas profundas (irracionais), significando-as de maneira a não perderem-se na irracionalidade total, mergulhando-as no fanatismo.


Quando dizemos - transportando o acima exposto para a prática umbandista - que a relação mediúnica faz com que o médium acesse conteúdos próprios, de caráter positivo e salutar, bem como dos seus Guias e Protetores, focalizamos o fato de que há um processo em execução de "despertar" aquilo que está latente no inconsciente do médium, mais especificamente na região "transmarginal", como conceituaria William James, onde jazem todos os conteúdos plenificadores e também aqueles de caráter perturbador, próximos à consciência. 

Toda essa gama de conteúdos que acessam à consciência do indíviduo, manifestando-se por meio de símbolos (nos sonhos e nos estados de transe, por exemplo), contém em si registros de todas as experiências que a Individualidade realizou no seu périplo de desenvolvimento como Espírito, os quais afiguram-se-lhe como sendo as chaves que abrirão as portas interiores do Si para o desvendar de suas necessidades de (re)ajuste perante a Vida, bem como de suas infinitas possibilidades de realização e felicidade.

Salientamos que a experiência do transe de Incorporação, conforme trata a proposta do presente texto, envolve a integralidade da percepção psíquica e mental, bem como dos sentidos físicos (corpo).

No processo de iniciação (desde a educação mediúnica até a coroação) o “corpo” como sujeito da experiência objetiva do transe, modifica sua forma e significação.

É um processo natural que passará a desenvolver-se na vida cotidiana do adepto, o qual iniciará uma nova condição perceptiva de sua realidade espiritual. A relação com o corpo é a primeira etapa, a qual estará presente e participará de todas as demais, passíveis de desenvolverem-se no futuro (vivências psíquicas e mentais de caráter profundo). Sempre as sensações corporais acompanharão a vida mediúnica do indivíduo.

Será por meio do corpo que o indivíduo perceberá as influências recebidas do mundo espiritual, num primeiro momento. Sensações variadas e ao mesmo tempo envolventes permitem que este identifique seus estados mediúnicos, fomentando sua frequência ao templo religioso, com a finalidade de praticar e educar-se na vivência do transe.

Adiante neste processo de Ascensão da Consciência, realiza-se a construção da Identidade do adepto, a qual situa-se em diferentes contextos (individual, espiritual, social e ritual). Ou seja, ao longo da vida como médium nas lides de Umbanda, o indivíduo constituirá uma relação de identidade própria. Identidade essa que permanecerá vinculada a sua percepção do corpo, pois é direcionada para o sentido de sacralização deste. Nos ritos iniciáticos, o médium vê que seu corpo, aos poucos, é convergido para a relação com o mundo espiritual, devido a vinculação de "partes simbólicas" fundamentais na vivência subjetiva do indivíduo, com as entidades espirituais que lhe servem de Guias e Protetores. O "dono da cabeça", o "dono das mãos", etc., são termos que surgem da experiência simbólica, psiquica e espiritual vividas pelo médium ao longo do seu processo de iniciação. Tal processo tem como caráter a expansão da consciência mediúnica na relação com o mundo espiritual e a sua consequente sensopercepção por meio das estruturas orgânicas, pelas quais manifesta-se o espírito encarnado (médium).

Primeiramente, por reconhecer-se como Espírito em relações diversas com o mundo espiritual. De igual forma, o médium também definirá sua pertença ritual, onde terá "assentados" (firmados) os seus Orixás, Guias e Protetores, com nomes, pontos e firmezas estabelecidos, bem como verificar-se-á a sua identificação social, como sujeito participante de uma coletividade específica (do templo religioso, o terreiro), com cujos demais membros este comungará e trocará irradiações (em sua coroa mediúnica) colhendo em campo íntimo todo o Bem a que se proponha doar de Si.

Conforme sua jornada mediúnica junto aos Guias e Protetores da Corrente Astral de Umbanda, o médium irá assenhoreando-se de um grau de percepção maior a respeito de sua condição espiritual, na qual o Orixá (e seu preposto, o chamado guia-de-frente) traduz-se, pela mística de Umbanda, como sendo a realidade última do próprio espírito/médium. Ou seja, o médium adquirirá consciência de que ele é o próprio Orixá e que sua essencialidade divina encontra-se no seu interior, por cujos influxos destes conteúdos de caráter numinoso este poderá ascender às esferas maiores do mundo espiritual.


No entanto, o ínterim deste processo é marcado por uma série de desafios íntimos que o medianeiro deverá vencer, com paciência e honestidade para consigo mesmo, uma vez que deverá equipar-se de maturidade e compreensão para defrontar-se como seus próprios dramas e conflitos, vencendo-os aos poucos, de maneira a ultrapassar as sombras de sua própria individualidade e rumar para a luz de sua condição divina, processo pelo qual jornadeamos e lograremos conquistar no suceder de várias vidas.


A relação com o Outro, o qual apresenta-se como Individualidade Espiritual e Transcendente, portanto, à parte do psiquismo do médium, encaminha a possibilidade de entendermos a Divindade não como um Ente desvinculado do que somos, mas, ao contrário, como estando também em nós a essencialidade divina, a qual propicia-nos galgar os degraus desta "escada de Jacó" cuja escalada nos alçará aos níveis mais amplos e plenos de entendimento da Vida e de nossa realidade existencial como Espíritos Imortais, constituindo parte do Divino.

Saravá a todos!

Referências:
Bárbara, Rosamaria (2002). A Dança das Aiabás (tese de doutorado)
Rotta, Raquel Redondo (2010). Espíritos da mata: sentido e alcance psicológico do uso ritual de cabolcos na Umbanda (tese de mestrado)
Leme, Fabio Ricardo (2006). O uso do imaginário nos estudos afro-brasileiros e no culto umbandista (tese de mestrado)
Otto, Rudolf (2005). O Sagrado
James, William (1995). As variedades da experiência religiosa
Jung, C.G (1993). O Homem e seus Símbolos


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