terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O Psíquico e o Imaginário: Relação entre Mundo Espiritual e Materialidade


Por: Gregorio Lucio

"Eu escutei
 E olhei
 Com olhos tão abertos.
 Verti minha alma
 No mundo
 Procurando o desconhecido
 No conhecido
E canto em altos brados
Em meu assombro!"
(Rabindranath Tagore)

Compreender a realidade espiritual sem a presença da materialidade é uma tarefa imaginativa, um processo psíquico difícil (em particular para o homem ocidental), uma vez que nossas expressões culturais e paradigmas filosóficos estão intrinsecamente ligados à interpretação dual da realidade, expressa na relação interacionista sujeito-objeto.

Elaborar uma visão em torno da realidade espiritual, na qual não haja a presença de objetos, paisagens, paragens, cidades espirituais parece uma questão um tanto complicada e dotada de um vazio de significação no que diz respeito a compreensão da dimensão transcendente, porquanto nossas vivências e experimentações estão repletas nas impressões que adquirimos por meio dos sentidos (mesmo na relação com o mundo psíquico) e na interação com uma "realidade exterior".


As experiências dentro do universo religioso dão-nos conta da existência de "localidade" e "individualidade" no mundo espiritual, definindo-as das mais diversas formas, variando conforme o meio cultural e as referências pessoais daqueles que se vêem sujeitos de tais "revelações", obtidas por via mediúnica ou do êxtase.


Devemos reflexionar a respeito da efetiva existência de tais paragens e personalidades do mundo espiritual, tendo como base o contributo ministrado por tais experiências da ordem do transcendente, verificadas de maneira tão ampla no mundo religioso. Todavia, o entendimento de como uma mesma realidade (a espiritual) pode apresentar-se de maneira tão diversa e ao mesmo tempo verdadeira para cada cultura religiosa, necessitará apoiar-se no conhecimento da dinâmica da psique como a chave para a sua compreensão, respeitada a notável diversidade cultural.

"As únicas coisas do mundo que podemos experimentar diretamente são os conteúdos da consciência". (Jung, 1971). Mediante tal assertiva de Carl Jung compreendemos que toda a nossa experimentação em torno da "realidade que nos cerca" está centrada em projeções que fazemos de objetos e sensações, permeadas pelo nosso complexo psíquico. Dessa forma, lidamos com o mundo e estabelecemos com ele relações, na medida em que podemos percebê-lo fora de nós, embora sua origem e complementaridade esteja imersa no todo psíquico de cada indivíduo.

"[...] pode-se entender que é da natureza humana se relacionar e construir o mundo por intermédio das imagens psíquicas, o que tem como consequencia a apreensão e relação do homem com o universo a partir de subjetividades que se de fato condizem com algo que se possa chamar de essência das coisas ou realidade, pouco importa. Sua importância reside na constatação de que esta subjetividade existe e quando partilhada se torna objetiva na vida daqueles que assim o fazem". (Leme, 2006)


Dentro do circulo religioso umbandista (tanto quanto de outras religiões ou doutrinas), temos as descrições, informadas diretamente por alguns sensitivos ou, por seu intermédio, pelas entidades espirituais manifestadas, de regiões do mundo espiritual, onde "vivem" e "transitam" um sem número de seres afastados da experiência carnal,  no entanto dotados de corporeidade. A Aruanda, a Cidade da Jurema, os Reinos das Águas, o Reino dos Astros, bem como os seus habitantes Caboclos, Pretos-Velhos, Crianças, etc, são alguns simbolos que aparecem dentro do imaginário religioso umbandista, servindo como comunicadores da existência de localidades e personalidades "Luminosas" na dimensão extra-física.


Conforme encontramo-nos relacionados com esses significados das experiências místicas oriundas da práxis umbandista, populamos, ao longo da vida religiosa, o nosso universo psíquico e contribuímos ao sistema de crenças pertinentes a nossa religião. Construímos, dessa forma, as bases para a transmissão e o compartilhar dos sentidos presentes nas experiências espirituais, associando-os ao imaginário existente e constantemente reelaborado pela coletividade umbandista. Dessa forma "[...] os símbolos religiosos têm um pronunciado 'caráter de revelação' e, em geral, são produtos espontâneos da atividade inconsciente da psique". (Jung, 1971).

"O imaginário, visto do prisma da pluralidade das imagens, é a própria vivência psíquica e constitui-se como campo onde se situam e guardam o patrimônio de linguagens, símbolos e artefatos culturais que se consubstanciam em imagens e suas significações, produzidos pela humanidade, e que se concretizam, se expressam, se toram 'visíveis' em memórias, fantasias, doutrinas, teorias, modos de comportamento, sentimentos, afetos, na arte, etc, habitualmente associados aos produtos da imaginação". (Leme, 2006)

Os aspectos encobertos pelas comunicações simbólicas dentro do campo místico da Umbanda, guardam em si a apreensão de um senso de totalidade, comunicado pelas entidades espirituais - e por seus cavalos, quando estes o conseguem captar -, o qual leva a compreensão essencial de uma profunda conexão entre tudo o que existe e a não-separação original entre sujeito e objeto dentro do mundo fenomenológico, embora suas relações assim o pareçam. Portanto:

"Os dois mundos, o divino e o humano só podem ser descritos como distintos entre si [...] os dois reinos são, na realidade, um só e único reino. O reino dos deuses é uma dimensão esquecida do mundo que conhecemos" (Joseph Campbell, 1997)

No entanto, configura-se uma dúvida em torno das revelações trazidas pelas entidades espirituais e comunicadas a nós. Como pode haver uma realidade na qual não há cisão entre sujeito-objeto se a própria descrição de locais na dimensão espiritual e da própria presença de seres com corpos espirituais levam a crer nisso? Uma vez que se existe espaço e materialidade no mundo espiritual, haverá também a interação dualista entre sujeito e objeto?


"A antítese do realismo materialista é o idealismo monista. Segundo esta filosofia, a consciência, e não a matéria, é fundamental. Tanto o mundo da matéria quanto o dos fenômenos mentais, como, por exemplo, o pensamento, são criados pela consciência. Além das esferas material e mental (que, juntas, formam a realidade imanente, o mundo da manifestação), o idealismo postula um reino transcendente, arquetípico, de idéias, como origem dos fenômenos materiais e mentais. Importa reconhecer que o idealismo monista é, como o nome implica, uma filosofia unitária. Quaisquer subdivisões, como o imanente e o transcendente, situam-se na consciência. A consciência, portanto, é a realidade única e final". (Goswami, 2002).


Entenderemos, por conseguinte, que segundo a visão espiritualista, a qual também parte do princípio monista em torno da realidade existencial, é a consciência como princípio e essencia que fundamenta a experiência do ser, e gera os contextos que podem ser entendidos como objetos e sujeito sendo coisas distintas. Essa consciência, podemos entendê-la como sendo a alma, ou espírito em sua dimensão mais profunda:"[...] a alma é o único fenômeno imediato deste mundo percebido por nós e por isto mesmo a condição indispensável de toda experiência em relação ao mundo". (Jung,1971)

Por meio do universo psíquico, o qual entenderemos como uma instância da consciência, surgem os símbolos que significamos como pertencentes ao universo de relação. Entendemos que o mesmo fenômeno dá-se também na dimensão espiritual, por conta dos próprios relatos das entidades espirituais que dão conta de situações nas quais objetos ou construções são erigidos, desmanchados ou modificados; espíritos que em estado de sofrimento e estagiando em um local sombrio, após sofrerem uma avassaladora modificação no padrão mental, por intermédio do arrependimento e da oração, vêem-se em local completamente diverso, onde podem ser tratados e orientados; entre outras.


Interessante observarmos, a partir de tais relatos, que a percepção do mundo espiritual, originada na consciência, "[...] pode se estender além dos limites humanos e incluir vários animais, plantas e até materiais inorgânicos e acontecimentos. Parece que tudo o que possa ser vivenciado no dia-a-dia como um objeto tem, nos estados incomuns de consciência, um complemento correspondente numa experiência subjetiva. O que comumente percebemos como elementos separados de nós - como pessoas, animais, árvores e pedras preciosas - podemos, na verdade, transformar e identificar num estado transpessoal".(Grof,1990).


Embora Grof estivesse referindo-se àqueles estados experimentados por indivíduos encarnados, no contato com a realidade espiritual, podemos também relacioná-los as percepções dos próprios espíritos."Os estados transpessoais, então, não diferenciam entre o mundo da realidade consensual e o mundo mitológico das formas arquetípicas".(Grof, 1990)

Essas correlações entre o mundo material e o mundo espiritual, desencadeadas por um princípio em comum - a consciência, espírito ou alma - conforme aprendemos, também são comunicados por intermédio dos símbolos religiosos contidos nas mais diversas culturas.

Na Cultura Vedanta, Nama representa os arquétipos transcendentes e Rupa as suas formas imanentes. Brahman situa-se como a consciência universal, a qual abarca ambas (Nama e Rupa).

Na Filosofia Budista temos Nirmanakaya como reino material e Sambhogakaya, o reino das idéias. Dharmakaya, como consciência única contemplando ambos os reinos.

No Kardecismo temos Matéria (realidade imanente) e Espírito (realidade transcendente) e Deus como sendo a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas (implicando na idéia de que a Divindade contempla em seus domínios tanto a manifestação - matéria -, quanto a ideação - espírito).


Na cultura Cristã, de maneira geral, temos os símbolos Deus, Terra e Céu, da mesma forma identificando o princípio de que na Divindade estão abarcados os domínios da imanência e transcendência.


 A Umbanda contempla em seu bojo de conhecimentos e experiências espirituais uma variedade de significados passíveis de aprofundamentos, pela dialética que encerra entre a vivência do Sagrado e a apreensão dos conteúdos psíquicos oriundos da prática mediunista, formando uma rede de sentidos ampla, a qual pode conduzir à compreensão de uma origem essencial e a conexão com o todo, com o Orixá, com o Divino.

"[...] Não obstante seja imediato o impacto estético e sensorial do seus ritos, a intencionalidade subjacente às ações, entretanto, quando se alcança percebê-la, manifesta-se pela encadeamento do seus símbolos, que se revelam inteligíveis à medida que o interlocutor progressivamente se afina com a sua linguagem e sistema simbólico e passa a ser capaz de 'senti-los'". (Pagliuso; Bairrão, 2010).

O sentir, processo psíquico primordial para a apreensão das vivências transcendentes experimentadas na Umbanda, é o recurso interior a ser desenvolvido pelo seu adepto. O sentir permite que retiremos das camadas mais profundas da psique os conteúdos mais próximos da nossa totalidade como espírito, integrando-os às nossas vivencias emocionais e produzindo mudanças em nossas percepções da realidade com a qual nos relacionamos, passando, gradativamente, a agir de maneira mais íntegra e menos fragmentária em torno de nossa existência, ampliando nossa consciência  e compreendendo que somos Seres rumando para a reintegração com a Essencialidade Divina, na qual as dualidades se dissolvem no Todo, no Um.

Saravá a todos!

Bibliografia Consultada:
Pagliuso, Ligia; Bairrão, J.F.M.H. (2010). Luz no Caminho: Corpo, Gesto e Ato na Umbanda (artigo científico)
Leme, Fabio Leme (2006). O uso do imaginário nos estudos afro-brasileiros e no culto umbandista (tese de mestrado).
Goswami, Amit (2005). A Física da Alma
                         (2002). O Universo Auto-Consciente
Grof, S. (1999) O Jogo Cósmico
              (1990) A Tempestuosa Busca do Ser 
Campbell, Joseph (1997). O Herói de Mil Faces
Jung, Carl (1971). A Natureza da Psique

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