sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Desenvolvimento Mediúnico na Umbanda: O Comando da Função Mediúnica


Por: Gregorio Lucio

A base para a conquista do comando da função mediúnica é a estabilidade psicológica. O medianeiro - "cavalo-de-santo" - deve estar em condições de experienciar, de maneira saudável, o transe medianímico, passando por todo o seu processo de estruturação (vide Processos Mentais e o Transe Mediunista) até o seu encerramento, sem guardar em si perturbações emocionais ou fisiológicas.

Saber "entrar e sair" do transe, de maneira calma e tranquila, evitando estertores e obedecendo aos comandos de "chegada" ou "subida", determinados pela curimba, ou pelo pai (mãe)-de-santo é o ponto ótimo de comando da função mediúnica, ao nível da manifestação produzida ao longo da gira no terreiro de Umbanda.


Por outro lado, reflexionando sob o ponto de vista emocional, o comando da função mediúnica deve ser a consequência e, ao mesmo tempo, a função psíquica alimentadora de uma potencial individuação por parte de seu experimentador, fazendo com que este estruture e desenvolva-se sob um Sentido único de Si-Mesmo. 


Estar consciente de suas questões emocionais (positivas ou negativas) de forma madura, meditando nelas e agindo para que suas qualidades sejam ampliadas, bem como as deficiências sejam, por sua vez, sanadas aos poucos, fará com que o medianeiro produza uma forte percepção de sua individualidade, ampliando sua capacidade de identificar e interferir em seus estados emocionais, sem com isso, deixar-se derrapar para as crenças inconscientes, de que é vítima de demandas, espíritos obsessores, etc, tombando em estados perturbadores e aflitivos.

Perceber-se como um partícipe da Vida Maior, veículo para a manifestação do Sagrado, filho e filha do Orixá, que por intermédio de seu organismo psíquico-biológico efetiva a união espaço-temporal do Divino com o humano, é aprofundar-se na compreensão da finalidade última, subjetiva, do transe mediunista de Umbanda, por meio do qual abrimos verdadeiras janelas para entendermos nossa relação com os intrincados mecanismos das Leis do Universo, sintonizando-nos com o Cosmos Dei.

Temos que as Personas manifestas a partir da estrutura do Self, organizador essencial do organismo psíquico, são fundamentais para a construção dos elos que irão unir a estrutura psicológica, cognitivo-emocional do médium, com aquelas próprias da entidade comunicante (Espírito Guia ou Protetor). É necessário que haja a edificação da forma, da máscara de cera sobre a qual a inteligência extra-física irá imprimir sua essencialidade, seus conteúdos, dando vazão ao seu potencial energético, para ação sobre o organismo do médium durante o trabalho espiritual e suas consequentes necessidades de expressão pelo psiquismo de intermediação.


Entretanto, para que haja a consolidação do Comando da Função Mediúnica, importa que reconheçamos e compreendamos que o tônus movimentador desta relação intermúndio advém de um Estado Mental propiciador. Mediunidade, dessa forma, refere-se a uma faculdade que encontra-se ao nível mental nos seres humanos, e para que seja vivenciada de maneira consciente, com o comando dessa função, devemos aprender a acessar e fixarmos nosso ambiente interior neste nível mais profundo de nossa subjetividade.




Reconhecendo a Mente como o pólo originador das ocorrências mediúnicas, pois que é o recurso principal do Espírito, vamos compreendê-la como sendo uma instância mais ampla, em cujo domínio, encontram-se os organismos psíquico e biológico do ser humano, bem como seu mundo de relação.


Quando o indivíduo, médium, não compreende essa questão, suas comunicações e seus estados de transe ocorrem da mesma forma, entretanto, como não há o Comando da Função Mediúnica, este fica à mercê do que os seus Guias e Protetores - ou entidades outras, caso esteja em estado de perturbação espiritual - poderão realizar pelo seu intermédio, apesar de sua ignorância.

Assim, quando há o Comando da Função Mediúnica, abre-se o caminho para que o fluxo da energia mediúnica percorra trajeto natural, passando da Mente para o Psiquismo, pelo Superconsciente (falaremos dessa instância psíquica em mais detalhes, posteriormente), de maneira que ocorra a presentificação patente das Entidades Espirituais, num sentimento inconfundível, para o seu experimentador, de que está sendo "possuído" por uma outra inteligência, com a qual comunga dessa experiência espiritual.

Toda manifestação espiritual, no contexto umbandista, retrata uma Experiência Simbólica do Transe, por meio da qual são representados os estados subjetivos experimentados pelo médium, denunciados,em sua postura corporal, expressão facial e gestual. A Experiência Simbólica é a tradução psíquica da comunhão mental com os Espíritos Guias, os quais trazem consigo a essência do Orixá e que preenchem o médium com a sua vitalidade e transcendência.

Dessa Vitalização Interior é que o médium pode identificar as sensações prazerosas e de enlevo que experimenta ao final das giras. Como se as tensões interiores diluíssem e as contradições dissolvessem.

O Estado de Completude que ressuma dessa condição de tranquilidade e vitalidade interior resulta da liberação das energias emocionais represadas nas estruturas próximas da funcionalidade psíquicas ordinárias e que necessitam, então, serem escoadas por um  mecanismo que seja suficientemente detentor de uma força propulsora capaz de alavancá-las, uma vez que pulsam sob as camadas estratificadas no psiquismo do medianeiro. Somente que essa completude deve ser atingida pelo processo consciente de construção da Experiência Simbólica, pois que, ao contrário disso, o que vemos é somente o extravasamento catártico de tensões emocionais.

Por fim, podemos dizer que, além do sentir a Vitalidade Interior e um Estado de Completude, o Comando da Faculdade Mediúnica, deve produzir um sentido de utilidade prática para a vida do seu experienciador. E, o que podemos esperar do "retorno" dessa viagem interior, ao longo das práticas nos trabalhos espirituais de Umbanda, é a Experiência saudável com o Real.

O médium capaz de comandar sua faculdade mental, possui os recursos dos quais se utiliza para viver o cotidiano de maneira saudável. Meditando em torno de suas condições interiores e conservando sempre um comportamento positivo e maduro para com as necessidades diárias. Sabe instrumentalizar-se para cumprir com seus deveres de cidadão, familiar e profissional, sem negligenciar quaisquer das partes que lhe digam respeito em sua vida íntima e social, conservando um comportamento de exemplo e respeito a si-mesmo e ao próximo, onde quer que se encontre e, principalmente, fazendo com que sua vida espelhe todo o Bem que colhe da Umbanda, demonstrando, pelos seus atos, o quão enriquecedor e libertador pode ser o caminho de um filho-de-fé dentro das Leis de Umbanda

Saravá a todos!




Bibliografia Consultada:
Lima, Bennto de (1997). Malungo Decodificação da Umbanda
Zangari, W. (2009). Psicologia da Mediunidade: do Intrapsíquico ao Psicosocial (artigo científico)
Jung, C.G. (1970). A Natureza da Psique
Byington, C.A.B (2008). Psicologia Simbólica Junguiana

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Desenvolvimento Mediúnico na Umbanda: A Construção dos Papéis Estruturantes



Por: Gregorio Lucio

Em seu caminho por dentro do tempo de iniciação nas Leis de Umbanda, o médium, cavalo de santo, irá construindo, ao longo das experiências que elabora no transe, uma relação de maior estreitamento com as entidades espirituais que acercam-se de seu campo mediúnico-sensitivo.

As entidades espirituais que comporão sua coroa mediúnica, funcionam como reguladoras de seu psiquismo, no que se refira às sensações e memórias que deixarão impressas em seu íntimo durante e após o transe, estabelecendo a possibilidade de sua identificação por parte do médium, conforme este amadurece na prática mediunista e habitua-se a refletir sobre seus estados mediúnicos e seu mundo íntimo como um todo, construindo assim o seu Campo Intuitivo.

Em conta do que relatamos, entendemos que há, por parte do médium e do templo no qual irá iniciar-se na Umbanda, uma construção de papéis estruturantes, os quais são erigidos segundo o processo de assujeitamento do neófito ao complexo de ritos, simbologias e expressões variadas que passarão a determinar as suas noções de pessoa e alteridade.

Isso porque, ao adentrar no universo imaginário próprio da mística de Umbanda, sua percepção a respeito de si-mesmo (pessoa) passará a identificar-se como sendo a de um ser transpessoal, essencial, cuja sua origem está atrelada a um Todo mais amplo, abstrato e integrador, o Espírito Imortal, o qual, justamente por estar imerso em um universo mais amplo do que este apreendido no sentir e no observar da experiência psíquica imediata de objetos e sensações da realidade física, tem em si a possibilidade de interagir em diversas dimensões da vida, pois é sujeito da experiência de sua própria individualidade, conquanto também propagador de consciências outras que por seu intermédio manifestam-se e fazem presentificar-se.

Sua noção de alteridade também encaminha-se para uma ampliação, uma vez que este deve o significado de seu universo íntimo, não somente a si mesmo, mas também a outras Individualidades, de origem Espiritual (Guias e Mentores), as quais mostram-se como atribuídas de duas funções de sentido psicológico distintas, sendo tanto a de servir como estruturadoras da experiência do transe de seu médium, quanto a de estruturantes do rito de Umbanda que se processa ao nível religioso-social. O rito de Umbanda forma-se em torno das características próprias aos grupos de entidades que manifestam-se dentro do templo, situando, pelo contexto de suas atuações e performances rituais, a fluência sob a qual a gira irá desenvolver-se. Sendo assim, o médium não existe somente por si, mas também em função do papel que lhe cabe na relação com seus Guias, bem como na relação de "suas" entidades com o meio religioso no qual estas desenvolvem seu mister.

O médium em desenvolvimento deve, portanto, constituir-se por um mecanismo de aprendizado, no qual este recebe, por parte dos médiuns mais experientes e, também, do babalorixá ou yalorixá da casa, uma atenção destinada a adequar suas manifestações dentro destas estruturas fundamentais do culto. Por isso, a conversa alternada realizada pelos "orientadores" do médium em seu processo de educação mediúnica, ora falando com a entidade incorporada, ora com o próprio médium, de maneira que se definam os papéis e se desperte no medianeiro a fluência na expressão de seus estados de transe.

"Símbolos e funções psíquicas são considerados estruturantes porque o resultado da ação das funções sobre os símbolos é a produção de significados, que formam a Consciência" (Byington, 2006).


Dizemos então que os processos mentais presentes no funcionamento psíquico do indivíduo, os quais permitem-no acomodar em seu complexo íntimo a manifestação de identidades outras, perpassam por seu inconsciente e, ao se ligarem ao complexo simbólico expresso pelo conjunto de ritos praticados na casa e presentes em sua memória, formam o campo da consciência mediúnica. A experiência simbólica das entidades passa aí a ser vivenciada, de pouco a pouco, de maneira ordenada e integrada ao campo da vida cotidiana do medianeiro.

Dessa forma, as percepções mediúnicas podem variar de médium a médium por conta da atuação dos papéis estruturantes construídos em seu psiquismo.

Para ratificarmos nossas colocações expostas acima (referentes à conjunção de processos psíquicos com elementos sócio-culturais para a formação da experiência religiosa-mediunista na Umbanda), em nossa intenção de abordar a questão mediunista na Umbanda pelo viés psicológico-cultural-espiritual, transcrevemos um trecho do artigo científico de Zangari (2003):

“[...]não é possível compreender a mediunidade por um enfoque que exclua os elementos culturais, uma visão descontextualizada. A mediunidade passa a ser vista como uma construção psicossocial, como fenômeno individual e coletivo ao mesmo tempo. Uma importante teorização nesse sentido foi proposta por Zangari (2003). Seu trabalho se notabiliza pelo desenvolvimento de uma teoria da mediunidade de incorporação, na Umbanda, que engloba tanto a dimensão social mais ampla, quanto a dimensão social dos grupos e a dimensão individual dos fenômenos mediúnicos. Sua teoria parte da noção básica da mediunidade como fenômeno psicossocial, enfatizando o papel da linguagem na construção grupal das experiências anômalas / paranormais[...] o fenômeno mediúnico num contexto religioso em que ele se dá de maneira bastante natural, onde a experiência direta das “entidades espirituais” é extremamente valorizada - visto que toda a tradição umbandista é transmitida de forma oral, pois são poucos os livros existentes a respeito, ao contrário do Espiritismo dito kardecista.

[...] o desenvolvimento da função mediúnica [...]atravessaria seis estágios ou processos específicos, que atuariam de forma concomitante e independente:

a) Assimilação = processo pelo qual o indivíduo passa a conhecer melhor a doutrina religiosa e o papel que cabe ao médium nesse contexto. Caracteriza-se pela “constituição de uma imagem interna ou representação das crenças do grupo” (Zangari, 2003, p. 174), e que envolve não apenas uma compreensão consciente, mas informações não-verbais e subliminares presentes em qualquer forma de interação humana;

b) Entrega = consiste na aceitação dos fenômenos, na disponibilidade para adentrar o estado de transe e permitir a “incorporação”;

c) Treino = afirma que a mediunidade é uma alteração de consciência disciplinada culturalmente, a qual segue determinados passos e comportamentos previstos pelas crenças do grupo. Esses passos devem ser seguidos caso se queira executar a função mediúnica adequadamente. O indivíduo se envolve cada vez mais com as crenças grupais, interiorizando-as e acomodando-as frente às diferentes situações da vida e ao contexto religioso em si. Esse processo envolve não só uma adaptação psicológica, como corporal:[...] uma vez que a entrega se realize, o organismo (compreendido aqui como o conjunto corpo-mente) se acomodará conforme o esperado. Uma vez vencida a resistência inicial, a estranheza de ter seu corpo ocupado por um outro ser, a médium exercitará seu sistema nervoso de modo a que funcione de acordo com as crenças do grupo, agora também crenças da médium, uma vez que ela também é parte do grupo. (Zangari, 2003, p. 176)

d) Criação = período de “incubação criativa” (Zangari, 2003, p. 178) em que as[os] médiuns constroem inconscientemente as entidades que se “comunicarão” por seu intermédio. Esse processo está limitado pelos conteúdos próprios da doutrina religiosa;

e) Manifestação = atuação das criações num contexto ritual;

f) Comprovação = busca por evidências que comprovem a origem espiritual do fenômeno, em prol da manutenção da identidade mediúnica e da identidade grupal.

Para Zangari (2003) deve-se considerar o papel do médium como unificado, e não como a simples soma dos “espíritos” ou facetas de sua identidade manifestadas no estado de transe. O médium é, na verdade, aquele que tem “a capacidade de assumir múltiplos papéis” (p. 185). Os espíritos são expressões de papéis sociais, mas cujo automatismo não permite às médiuns exercer qualquer controle sobre eles. As médiuns [estudadas pelo pesquisador] seriam ao mesmo tempo intérpretes e coautoras de suas entidades

A elaboração dos papéis estruturantes da experiência mediúnica dá-se, portanto, sob a inter-relação de seu mundo psíquico-espiritual com o meio religioso-cultural, no qual encontra-se. Há um sistema de estímulo-resposta e de elaboração simbólico-ritual que alimenta a esfera não-racional do psiquismo do médium, de maneira que seu inconsciente torne-se preenchido e criativamente ressignificado, na medida em que este vai se assenhoreando da vivência dos ritos, das giras, das preparações, dos trabalhos...

"Dessa forma, um símbolo e sua linguagem simbólica somente passam a serem compreendidos, a partir do momento em que o ser se transporta para a esfera ou egrégora em que ele se instala. Adentrando no universo místico da Umbanda, penetra-se em sua simbologia, distanciando-se o adepto lentamente do aspecto simplório de cada coisa e se projetando em sua essência.

O aspecto simbólico então reveste-se de realidade, uma vez que ao interno do núcleo central a artificialidade ou o irreal passa a não mais existir enquanto estrutura variável e sim, agrega em seu contexto sua própria realidade. Desperta-se então para a mística, aprendendo a observar e enxergar em um símbolo a imagem tangível do plano invisível impresso em toda a sua significação" (Nunes, 2009).

Ao enfatizarmos a função do inconsciente como instância psíquica plenipotente na elaboração dos papéis estruturantes da experiência mediunista, no decorrer do desenvolvimento mediúnico, não queremos com isso corroborar com a idéia de que a fenomenologia e a expressão espiritual originam-se no inconsciente. Entretanto, elas fluem por este, pois é no inconsciente onde estão os sedimentos simbólicos, as arquetipias, e o substrato da mundivivência realizada por cada um, como Ser Espiritual, que comporão a expressão profunda do intercâmbio com o mundo espiritual, pois "[...] o inconsciente resume no psiquismo uma modalidade múltipla da realidade, ao passo que o ego corresponde a uma modalidade fixa e parcial do real".(Lima, 1997)

Finalmente, não podemos deixar de mencionar a importância da relação com o corpo e sua correspondente imagem corporal elaborada pelo médium, em conjunto com cada entidade manifesta, como papel estruturante no processo de desenvolvimento mediúnico. Cada Espírito carregará para a mente do médium, os elementos que sejam possíveis de expressar, por meio da gestualidade e do simbolismo corporal, a essencialidade do trabalho e a energia espiritual a que cada Guia está vinculado.

Conforme o médium vai tomando consciência dessa imagem corporal e seu correspondente espaço psicológico criado dentro e fora de si, poderá sentir o fluir das irradiações carreadas por cada Guia de Luz que por sua coroa presentifica-se, permitindo reencontrar, na experiência subjetiva com o seu próprio corpo, os significados mais profundos a respeito de sua individualidade, por permitir a integração de suas funções sensoriais e psíquicas, ampliando a sua percepção mediúnica.

Essa integração da imagem corporal, construída pelos transes específicos de cada entidade, na personalidade mediúnica, faculta a percepção profunda da sacralização da mente, pela qual o adepto aos poucos vai adentrando ao entendimento de que ao ser acessado pelas Entidades Astralizadas (Guias e Mentores de Luz), este estabelece contato direto com a Divindade que por ele flui e irradia-se, espalhando as bençãos dos Orixás para o mundo físico, onde por ora nos encontramos.

Cabe ao médium, neste processo, ir tornando-se cada vez mais consciente a respeito de sua realidade interior, bem como deste complexo de manifestações que ocorrem em si-mesmo para que seja capaz de plenificar-se e gratificar-se psicologicamente, traduzindo modificações profundas em sua conduta e sutilizando seus pensamentos, ampliando assim suas possibilidades de viver com paz e amor em seu coração.

Saravá a todos!

Bibliografia Consultada:
Byington, C.A.B. (2006). O Desenvolvimento da Personalidade - As Sete Etapas da Vida (artigo científico)
Zangari, W. (2009). Psicologia da Mediunidade: do Intrapsíquico ao Psicosocial (artigo científico)
Lima, Bennto de (1997). Malungo Decodificação da Umbanda
Nunes, M.C.; Alves R. (2009). Oyé Orixá 
Zimmermann, E. (2009).  Corpo e Individuação
Jung, C.G. (1970). A Natureza da Psique



sexta-feira, 13 de abril de 2012

Desenvolvimento Mediúnico na Umbanda: Função Anímica e Mecanismos Adaptativos



Por:  Gregorio Lucio

Desdobrando a temática anteriormente iniciada, quando da publicação a respeito do Desenvolvimento Mediúnico na Umbanda, prosseguiremos nossas reflexões em torno de uma questão fundamental na estruturação da experiência espiritual envolvida na prática umbandista, a qual identificamos como sendo relativa à questão anímica e aos mecanismos adaptativos inerentes ao processo psíquico de construção da experiência medianímica.

Devemos entender o princípio do aprendizado mediunista como sendo um caminho repleto de novas experiências de ordem sensorial, emotiva e experimental, uma vez que o adepto, logo após ser admitido ao circulo de médiuns da casa, deverá iniciar-se na prática do transe, sob as regras e normas vigentes no templo de Umbanda.


Interessa-nos, neste momento, enfocarmos as características de ordem psíquica que se irão aflorar ao longo do processo do chamado "desenvolvimento", ao qual o candidato a médium será submetido.Variando de acordo com as características de cada um, observamos que se somam às fileiras de trabalhadores dos templos de Umbanda, indivíduos portadores das mais diversas gradações entre sua sensibilidade psíquica e o tônus característico dos estados de transe que cada um passa a vivenciar.


Dessa forma, em alguns irrompem os estados de transe, em verdadeiro estupor, sob o qual o neófito agita-se bruscamente, girando de maneira desordenada, muitas vezes chegando a desequilibrar-se, arriscando-se em causar um acidente para si-mesmo e para aqueles que lhe estejam próximos. Noutros, o transe dá-se de uma maneira muito sutil, quase imperceptível, não logrando, em alguns casos, tornar-se mais intenso mesmo com o passar dos anos e da vivência nas giras.

Características de ambos, entretanto, as funções psicológicas de caráter anímico sucedem-se no início das experimentações mediunistas, comunicando-se por meio da expressão corporal, da gestualidade, da dança e dos trejeitos específicos da entidade que ensaia manifestar-se, aos poucos, por intermédio de seu medianeiro.

Buscando compreender o animismo como sendo a expressão da "alma do médium" dando seu colorido às manifestações espirituais que ocorrem por seu intermédio, entendemos que a manifestação particular do médium no ato da experiência mediunista ocorre sempre e invariavelmente, pois que é justamente pela função anímica que estruturam-se os campos de registros próprios para os contatos com a dimensão espiritual, neles sendo impressos e decodificadas as informações obtidas e comunicadas pelo "cavalo".

Entendamos a alma como sendo não identificada diretamente com a consciência, a qual é composta por duas partes, a saber, o consciente e o inconsciente; tão pouco a alma identifica-se com as nossas emoções, sentimentos ou processos psicofisiológicos que dão-se em nosso organismo, em nosso cérebro; a alma é um campo que vai para além do tempo e do espaço e une todas estas partes (consciência, emoções, sentimentos, sensações, corpo físico), em um todo maior e dotado de identidade.

Assim é que a alma corresponde ao próprio Espírito, no caso, o médium. A personalidade que ora se encontra na condição de médium, é a elaboração de um processo complexo de mecanismos psicológicos, cujos seus conteúdos foram elaborados tanto interiormente quanto introjetados por força da influência com o meio social. Não há como, portanto, deixar-se de lado a influência direta do médium nas manifestações mediunistas, sob pena de incorrermos num "pensamento mágico" ao acreditar que os fenômenos de ordem espiritual dão-se por razões extemporâneas ou fora daquilo que se configura como sendo os mecanismos já dados e estabelecidos pela nossa condição de seres humanos. A fenomenologia, por isso, não ocorre fora do campo psíquico e orgânico do médium, embora sua origem remonte a uma outra condição dentro da subjetividade humana (não originando-se exclusivamente do psiquismo ou do organismo biológico).

As emoções e sensações que passa a experimentar ao longo do processo de desenvolvimento mediúnico, servem como comunicadoras da função anímica do médium, denunciando seus estados de transe, independente da intensidade na qual este ocorra. Imagens psíquicas de caráter simbólico e pensamentos fugidios também assomam ao consciente como sendo os primeiros movimentos da alma do médium na tentativa do intercâmbio espiritual.

O animismo, por intermédio da função anímica, serve como mecanismo saudável da expressão inconsciente do médium, inclusive por força de uma irrupção catártica que pode provocar, trazendo à tona emoções e conflitos reprimidos. Médiuns que adentram, mesmo durante a manifestação do transe nas giras, em crises de choro, de paralisia, de esgares, etc, geralmente estão sob influência do processo catártico, anímico, funcionando como válvula de escape das tensões psíquicas de que se vêem tomados. Obviamente, essas primeiras expressões do animismo devem ser superadas pelo adepto, ao longo do tempo, que a elas não deve fixar-se, para que não constituam entrave à passagem das irradiações e pensamentos das entidades espirituais, de maneira que estas sejam plenamente integradas ao seu campo psíquico e emocional, promovendo o comando da função mediúnica.

Em conjunto a estas impressões intensas que são vivenciadas, o médium vai aos poucos elaborando um constructo psicológico, do qual emergirá as personalidades-simbólicas que servirão como refletoras das entidades espirituais que adentrarão a sua faixa mediúnica, personificando-as segundo a mística e a simbologia dada ao imaginário umbandista, variando de acordo com a tradição e a ritualística de cada terreiro.

Percebemos, por conseguinte, que a alma do médium modela personas simbólicas que servem como veículos para o mergulho ao inconsciente coletivo, do qual retira seus substratos e arquetipias, de onde podem emergir as forças contidas no si-mesmo, cuja sua realidade se faz presente quando, por ocorrência do transe assumido pelo médium, este sente-se tomado de grande força interior, de serenidade e paz autênticas.

Podemos conceber, por conta deste mecanismo adaptativo que se desenvolve, a psique do médium como sendo dotada de plasticidade e dinâmica criativa, promovendo a manutenção do eixo e do centro de sua individualidade, em torno das quais, as personalidades-símbolos irão constelar-se. Essa plasticidade e dinamização das estruturas psíquicas possibilitam que a subjetividade do invíduo-médium permaneça sempre no centro da experiência mediunista, não derrapando para um mecanismo patológico esquizofrenógeno, o qual ocorreria caso houvesse a fixação do "eu" do médium a uma destas personalidades-símbolos.

Ao longo do tempo o "cavalo" deve passar a organizar e comandar interiormente este processo psíquico, o qual não irá desaparecer, conforme o já dissemos, mas sedimentar-se-á cada vez mais, com vistas a possibilitar que num dado futuro, haja a ocorrência da comunicação medianímica, de forma segura e saudável para o médium, deixando em si marcas indeléveis de plenitude e amadurecimento emocional, por conta de uma construção salutar e segura que realizou em seu processo de "desenvolvimento mediúnico".

Salientamos sempre a necessidade da boa orientação e da paciência àqueles que buscam a realização espiritual dentro dos círculos umbandistas, pois trata-se de uma conquista que ficará gravada nas estruturas mais íntimas de nosso ser. Por isso, deixar de lado a pressa em querer dar comunicações e consultas, lembrando sempre de que a comunhão espiritual com o Guia é o elo mais poderoso de aprendizado espiritual, por conta da formação do campo intuitivo que passa a se desenvolver no íntimo do filho-de-santo.

Nossa preocupação deve-se ao fato de que observamos, cada vez mais, pessoas com mediunidades ou potenciais mediúnicos sendo desperdiçados e tornando-se totalmente atormentadas e atormentadoras por não cumprirem os processos de construção e amadurecimento que só o tempo e a vivência podem dar, causando sempre um desserviço à nossa Corrente Astral e à Umbanda como um todo.

Por isso, ponderação, paciência, dedicação e estudo, nos campos das experiências espirituais, dentro das lides umbandistas, serão sempre os recursos valiosos que todos deveremos nos valer, para que nossa religiosidade seja vivida de maneira plena e repleta de realizações felicitadoras, desmistificando tabús e ampliando o entendimento de conceitos e simbologias pertinentes ao nosso imaginário religioso, à nossa espiritualidade, na busca de conhecimentos sólidos em torno de nossa religião de Umbanda, retirando-nos da condição de marginalidade a que nos vemos colocados, muitas vezes por falta de preparo e esclarecimento de nossos próprios adeptos.

Saravá a todos!



Bibliografia Consultada:
Lima, Bennto de (1997). Malungo Decodificação da Umbanda
Jung, C.G. (1970). A Natureza da Psique



domingo, 18 de março de 2012

Desenvolvimento Mediúnico na Umbanda


Por: Gregorio Lucio

Questão amplamente discutida e imersa em diversos discursos que procuram explicar e dar-lhe uma diretriz satisfatória, o Desenvolvimento Mediúnico afigura-se como um estágio muito importante na vida religiosa do adepto de Umbanda, candidato a médium, uma vez que esta fase implicará diretamente na construção da própria identidade mediúnica do indivíduo, bem como estará vinculada ao todo de seu complexo psíquico, carecedor de atenção e cuidados, pois sua elaboração e vivência dentro do campo religioso assumirão influência direta sobre a constituição psicológica do neófito umbandista.

Iniciaremos, neste momento, a série de estudos "Desenvolvimento Mediúnico na Umbanda".

Desdobraremos o tema "Desenvolvimento Mediúnico na Umbanda", abordando a questão em 5 textos, a serem publicados em data futura, especificando a dinâmica e o mecanismo das funções psíquicas envolvidas no tentame da prática mediunista até o atingimento e completude da Consciência Mediúnica.

Aprofundaremos, então, nossos estudos enfocando  a perspectiva psicológica sob a qual dão-se as adaptações das estruturas psíquicas do médium, de maneira a fazer surgir a experiência simbólica das entidades, por meio do transe, com o consequente atingimento da função mediúnica, salvaguardando o eixo e o centro da individualidade medianeira.


Entretanto, gostaríamos de tecer algumas considerações introdutórias a respeito da questão do Desenvolvimento Mediúnico, para podermos situar nossa ótica em torno dessa problemática e refletir sobre a necessidade de estudos a respeito da função mediúnica, entendendo como essa faculdade mental está relacionada ao contexto religioso umbandista e de quais traços ela se reveste no intercâmbio mediunista dentro do circulo religioso em questão, sob as mais diferentes gradações.


Existem muitas explicações, tratadas em livros e nos discursos presentes nos terreiros, visando o esclarecimento em torno da necessidade do desenvolvimento da capacidade mediúnica do indivíduo com vistas a promover a sua "evolução" como espírito, dando cumprimento a uma missão assumida no passado. Da mesma forma, o meio religioso umbandista procura vincular ao discurso de justificava da necessidade do  trabalho mediúnico, práticas e métodos os mais diversos para que se dê tal mister. No entanto, não nos ateremos aqui a avaliar tais práticas ou a validade destes discursos que tornaram-se "senso comum" dentro da Umbanda. Nossa intenção será a de abordarmos essa questão sob uma ótica psicológica, identificando as bases psíquicas envolvidas na elaboração dessa experiência religiosa e a sua preponderante relação com o campo subjetivo do adepto umbandista.

Realizaremos uma interface com alguns aspectos pertinentes ao conceito da mediunidade e suas particularidades, entretanto, enfocaremos a perspectiva psicológica como sendo nosso interesse predominante.

Justificamos tal intenção pela convicção que temos, a respeito de alguns mecanismos que envolvem a questão do mediunismo de Umbanda, segundo a qual entendemos que toda e qualquer experiência medianímica pertencente ao mundo interior do ser humano encarnado ocorre obedecendo a um processo de construção, cuja sua elaboração dá-se por um sistema de causalidade, em que aspectos mentais e psíquicos vinculam-se e são modulados pelo aparelho cerebral, o qual manifesta no organismo e na relação com o meio a sua realidade. Assim, todo e qualquer elemento que constitui-se como resultado do intercâmbio mediunista, e até  mesmo a própria formação subjetiva do indivíduo, deverá passar, condição sine qua non, pelo campo mental, psíquico e pelo aparelho cerebral para que possa ocorrer e interagir no meio em que vivemos. De tal sorte que as funções psicológicas determinarão profundamente os resultados de toda e qualquer experiência realizada pelo ser, seja no aspecto de manifestação da função mediúnica, seja nos seus resultados compensadores que servirão como recursos de engrandecimento e transformação interior.

A realização da experiência mediunista obedece a um processo de aprendizado a ser realizado pelo adepto, ao longo de sua jornada espiritual. Este deverá passar por vários momentos em seu aprendizado ritual, pelos quais estará cada vez mais integrado a vida religiosa dentro de seu terreiro. A presença frequente e interessada  nos ritos da casa, nas giras, garantem ao médium o cabedal de experiências que aos poucos guardará em sua memória, aprofundando seu conhecimento e contato com os fundamentos da casa, avançando os degraus de sua iniciação e aprimorando sua sensibilidade psíquica.

O Aprendizado mediúnico funciona como elemento formador da identidade ritual do adepto, por cuja sua vivência deverá lograr o atingimento de níveis mais amplos de consciência perante si mesmo e sua vida, identificando na sua possibilidade mediúnica ensejo para a construção de estados íntimos plenificadores, saudáveis, para si e para a coletividade na qual transita e vive.

Por conta disso, o potencial medianímico deve ser entendido como constituído por grande carga energética, ligada ao campo psíquico e vital, provenientes da profundeza do Ser Espiritual que somos, emergindo à Consciência e manifestando-se por intermédio do organismo físico, passando pelas instâncias psíquica e mental (componentes do corpo perispiritual), as quais funcionam como estruturas de base e condutoras deste potencial, a ser convertido em faculdade mediúnica, sob o comando do médium, momento no qual a personalidade medianeira adquire consciência de si mesma e ruma em direção a transcendência do ego, na busca da libertação do ciclo kármico.

Disciplinar as forças medianímicas ordenando-lhe as expressões, lastreando-as em princípios Ético-Morais, compõe imperiosa necessidade para que a comunicação espiritual seja repleta em conteúdos enriquecedores e úteis para o aprimoramento pessoal e coletivo.

Educar a si mesmo é exigência para o desempenho mediúnico correto e de efeito salutar, desvinculado das relações perturbadoras, para isso aprendendo a identificar e comandar as suas próprias emoções e pensamentos, para que não se imiscuam em sua personalidade os traços inferiores que denotem maus hábitos e a má condução de conversações e atitudes que se mostram irrefletidas.

O desenvolvimento mediúnico, como experiência disciplinadora e educativa das capacidades do indivíduo, deve servir como um comunicador com seu mundo íntimo, a sua consciência, acerca da realidade premente que se encerra no aprimoramento pessoal, na libertação de hábitos arraigados, na superação de conflitos e limitações íntimas, com vistas a se lançar em um novo contexto de vida e possibilidades de amadurecimento    

Lembramos, conforme já vimos escrevendo (leia Processos Mentais e o Transe Mediunista), que transes ocorrem frequentemente, constituindo experiência compartilhada por muitas pessoas, no entanto, muitas vezes desvinculados de mais estreitas ligações com aqueles recursos que indicam o comando saudável de seu experienciador. Portanto, o fenômeno por si só não é capaz de fornecer ao campo íntimo a possibilidade de elevação do médium e daqueles que o buscam. Somente quando ligada a uma concepção de vida bem elaborada, pautada em princípios capazes de produzir benefícios psicológicos para a vida é que a medianimidade poderá operar a construção de valores duradouros, internos à tradição umbandista na qual se manifeste, assim como a orientação de cunho libertador, a qual não engana, não se liga a interesses pessoais ou ao comércio espiritual, visando primordialmente a alegria de servir e a conquista de valores nobres para o engrandecimento de todos.

O médium deve enriquecer seu patrimônio intelecto-moral para que possa encontrar em si as diretrizes de sua própria existência, o significado de sua própria vida, seguindo um caminho de exemplo e dedicação, pois seu papel religioso exige postura condizente com sua função, num compromisso responsável que deve esposar conscientemente, contribuindo para a sua boa imagem, assim como de seu terreiro e da religião que optou por abraçar.

O caminho da iluminação mediúnica ocorre na inter-relação do que se vive e aprende dentro do templo religioso, na prática mediunista, convertendo seus resultados para a vida cotidiana em seus vários papéis que cumpre desempenhar, como profissional, cidadão e elemento pertencente ou responsável por uma família.

Desenvolvimento mediúnico bem estruturado implica em disciplina e educação reunidas num aprendizado, cuja sua finalidade é a iluminação da consciência, por meio da qual será possível viver a própria existência carregada de expressões felizes e de momentos gratificadores. Logo, desenvolvimento mediúnico não é um breve trecho da história religiosa do adepto de Umbanda. É aprimoramento e ampliação das possibilidades de interação com a Vida, em quaisquer planos que esta se apresente. Dessa forma, desenvolvimento mediúnico é trabalho de evolução íntima que ao médium cabe cumprir, do primeiro ao último passo de sua jornada mediúnica.

O rito de Umbanda, desde que bem fundamentado em uma tradição sólida e ética, pode fornecer recursos auxiliares e influenciadores do campo psicológico do médium, para que possa conduzir os elementos da consciência, num processo de amadurecimento psicológico, ao integrá-los ao Self - seu originador -, realizando o seu vir-a-ser, iluminando-se e iluminando a sua trilha de vida, servindo como farol àqueles que lhe observam os passos e o visam como modelo e exemplo.

Formularemos, baseados em nossos estudos e reflexões, as correlações entre o desenvolvimento mediúnico e a estruturação psicológica da experiência espiritual para que possamos compreender melhor a finalidade da prática mediunista e seus efeitos na vida de seu experimentador. Em breve, trataremos os temas que se seguem:



Saravá a todos!

quinta-feira, 8 de março de 2012

Processos Mentais e o Transe Mediunista (Parte III)



Por: Gregorio Lucio


Finalizaremos, neste post, a tríade de artigos componentes do tema "Processos Mentais e o Transe Mediunista", abordando o último estágio estruturante e a culminância do Transe Mediunista (7º nível de atividade mental).

Quando o exercício do mediunismo na Umbanda solidifica-se por meio da utilização consciente dos recursos psíquicos e mentais que o médium possui a sua disposição (Concentração e Vontade), de maneira a conduzir os processos fenomenológicos da dinâmica psíquica, conjugadas no processo de captação (ideação mnemônico-emocional) e manifestação do estado mediúnico, torna-se sua decorrência a composição de um Campo Intuitivo, no qual são depositados, por assim dizer, os seus registros anímicos - ocasionados pelas experiências de contato com a dimensão espiritual (motivadoras da atividade criativa) -, assim como aqueles derivados da ligação telepática do medianeiro com os Espíritos que passam a comungar de seu campo psíquico, na condição de Guias e Orientadores Espirituais, propiciando as intuições de caráter mediúnico.

Sendo assim, entendemos que há nas instâncias superiores do inconsciente, uma formação sensível de conteúdos que surgem pela condição captativa da sensibilidade medianímica do Ser, cujos seus registros encontram-se em estado de latência e passíveis de serem acessados pela consciência, servindo de elementos estruturais para as novos contextos existenciais que o ser poderá vivenciar, devido a grande intensidade energética-emocional do qual são dotados. Esse, portanto, o Campo Intuitivo. A passagem dos conteúdos anímicos latentes no Campo Intuitivo implicam em dois direcionamentos psíquicos possíveis que se afigurarão como a ocorrência de intuições acentuadas ou de impulsos criativos.

O 6º estágio, portanto, encontra-se relacionado à Construção do Saber Espiritual, de caráter interior, via de acesso às experiências numinosas do Transe, cujas suas instâncias encontram-se situadas no par Intuição-Criatividade.

"[...] Certos conteúdos provêm de uma psique mais ampla do que a consciência. Com frequência, eles encerram uma análise, uma compreensão ou um saber de grau superior que a consciência do indivíduo seria capaz de produzir. O termo mais apropriado para designar tais acontecimentos é: intuição" (Jung, 1974).

A Intuição, embora surja não como decorrência do processo intelectivo, mas como fenômeno mental espontâneo, necessita da integração dos processos citados anteriormente (ver:  Processos Mentais e o Transe Mediunista) para que sua apercepção possa traduzir-se de maneira precisa ao consciente e ser compreendida pelo ego.

Os registros mediúnicos não fixam-se, em sua totalidade, na consciência do médium. Devido ao intenso tráfego de pensamentos e percepções que passam pelo seu campo psíquico - na conjugação com o psiquismo da Entidade Espiritual -, o organismo psíquico, a semelhança do cérebro, realiza uma filtragem daquilo que chegará a percepção consciente.

No entanto, nessa "troca" desenvolvida no relacionamento mental entre médium-Guia Espiritual, deposita-se, no Campo Intuitivo, uma carga muito maior de registros do que aqueles que chegam-lhe à consciência. Esses, que permanecem em estado latente no arquivo anímico, serão colhidos pela consciência por conta do ato voluntário do médium quando este buscará, no momentos de oração e de profundo recolhimento interior, a inspiração ou o entendimento necessários a um dado acontecimento, seja de ordem pessoal ou na busca de beneficiar aquele que lhe busca.

"A intuição decorre de um processo inconsciente, dado que seu resultado é uma idéia súbita, a irrupção de um conteúdo inconsciente na consciência. A intuição é, portanto, um processo de percepção, mas, ao contrário da atividade consciente dos sentidos e da introspecção , é uma percepção inconsciente" (Jung, 1970).  A "[...] intuição é um processo de percepção das possibilidades inerentes a uma dada situação". (Jung, 1978).

A elaboração daquilo que constituirá-se como intuição, provirá das instâncias superiores do inconsciente, porquanto seus conteúdos formadores serão aqueles conquistados por consequencia do ato da vontade concentrada em torno de determinada realização ou conhecimento. O médium, voltando-se sobre Si-mesmo, reelabora os conteúdos adquiridos (racionais e não-racionais), reordenando-os de forma totalmente inovadora, surgidos do Campo Intuitivo, no qual poderão ser abarcadas as dimensões mais profundas e abrangentes da Consciência.

Tais intuições poderão ocorrer em estados de pré ou pós-transe, bem como noutros momentos, sob forma de memórias/imagens espontâneas em estado anterior ou posterior ao sono e insights ocorridos em momentos de prece e oração.

O resultado emocional da influência do Campo Intuitivo sobre o médium carateriza-se por um estado de relaxamento, de sensação de paz e segurança intima, acompanhadas da fluência espontânea de pensamentos e imagens de caráter benéfico e direcionadores da conduta que deverá observar ou das palavras que deverá enunciar em favor de si ou do próximo.

Originária do Campo Intuitivo, a Criatividade assume a função de reorganizadora dos conteúdos latentes no arquivo psíquico, os quais conservam-se em estado potencial, por cujo seu devir, sua atualização, irrompem a consciência os novos contextos existenciais elaborados no ato criativo. 

"Criatividade é a expressão de um potencial humano de realização, que se manifesta através das atividades humanas e gera produtos na ocorrência de seu processo" (Sakamoto, 1999).

"Na criatividade, o novo se refere ou a um novo significado ou a novos contextos para se estudar o novo significado (Goswami, 1996 e 1999) [...] chamo-la de criatividade situacional. [...] Por outro lado [existe] a criatividade fundamental, pois envolve a descoberta de um novo contexto de pensamento ou invenções subsequentes" (Goswami, 2001).

No mediunismo, o campo criativo servirá como repositório de energias psíquicas que funcionarão como catalisadoras das construções mentais, emocionais e comportamentais do médium, pois quanto mais se proponha a agir de maneira voluntária, colocando-se como sujeito útil e produtivo, também galgará os degraus de sua própria construção mediúnica, aumentando suas possibilidades captativas e de apreensão da realidade espiritual.

Alçar metas enseja a realização saudável de conquista para a existência e a expressão do Ser criativo, o qual não estaciona na fixação dos condicionamentos sociais ou nas travas do desapontamento e do receio diante do desconhecido, ao contrário, passa e vai além, atingindo novas situações de vida que se lhe fazem de extrema compensação e completude interior.

Poder olhar a vida sob novos significados, o que não quer dizer uma fuga da realidade - antes sendo uma mudança de ótica sobre um dado acontecimento existencial -, propicia um enquadramento das estruturas psíquicas do Ser em novos contornos do seu existir, aumentando-lhe a resiliência diante das ocorrências que não pode mudar e angariando em seu íntimo aquelas ideações que lhe servirão de amparo para a contínua busca de seu significado existencial.

A Criatividade serve como recurso para compor o quadro subjetivo da Vida, daquele que atinge o processo psíquico criativo, pois é daí que retirará a inspiração para novas realizações, para a resolução de desafios os mais variados, além de garantir a si a experiência do prazer de produzir algo útil a sua e a vida de outrem.

Acrescentamos, no que diz respeito a Criatividade, que a elaboração de conteúdos correspondentes à ordem positiva e salutar para a vida emocional do Ser deverá estar pautada na atitude de Bem Querer e Bem Dizer a vida, pois não se pode esperar uma mente criadora de novos contextos existenciais, se esta não se desgarrar das impressões tormentosas a que nos prendemos e dos maus hábitos que adquirimos, por nossa limitação no discernimento das Leis da Vida.

Criar é voltar o olhar para dentro si e ser capaz de encontrar, no caos aparente do arquivo psíquico, os elementos capazes de pintar com novas cores a tela mental  que permeia nossas impressões e serve como pano de fundo para a experimentação de tudo quanto percebemos dentro e fora de nós.

Assim é que o filtro mediúnico, para que seja capaz de transmitir de maneira fidedigna as mensagens do mundo espiritual, necessita de boa dose criativa, conforme o conceito que ora apresentamos, uma vez que as construções da mente só atingem significados e possibilidades inovadoras quando são profundamente significantes para alguém.

A Criatividade e a expressão criativa cingem o ato de viver e elevam-no aos páramos do Ser e do Sentir, entregando-se ao labor do amadurecimento pelo produzir, sujeito ativo e integrado intimamente, para tornarem-se, mediante a injunção da morte (desencarnação), a força propulsora no Superconsciente que proporcionará a nossa "passagem" lúcida pelos portões de além-túmulo, bem como nossas possibilidades de escolha para novos contextos de vida, em nossa próxima encarnação.

Ocorrendo a quebra das fronteiras entre os aspectos racionais e não-racionais da experiência, por meio da Criatividade, formar-se-á uma visão integralizadora do conhecimento de Si e da Vida. Neste estágio incorrem os pródromos da Experiência Mística de caráter inefável e arrebatador, momento no qual desaparecerão as contradições intelectivas e a aparente separação entre eu e não-eu. O Ser que se É, integrará-se a um Todo, de onde retornará conservando uma forte e determinante impressão da transcendentalidade da Vida, diluindo-se os paradoxos e modificando o sentido de seu existir.

"Criar é o verbo por excelência do existir humano, já que Criar é para o ser humano, o mesmo que existir e o mesmo que evoluir. É sempre construir e expressar para os seres humanos e, o mesmo que ampliar a consciência do ser, do sentir e do agir. É penetrar o universo das infinitas possibilidades e a partir desta experiência, modelar parcelas de realidade, trazendo à luz da consciência, verdades humanas" (Sakamoto, 1999).

Saber criar é condição imperiosa para saber morrer e renascer. 

O potencial criativo humano, dentro da prática umbandista, consolida-se na ocorrência do Transe Mediunista (7º estágio de Processos Mentais), criatividade em expressão máxima, quando seu resultado é de completude interior naquele que o vivencia como o ápice da construção subjetiva da experiência religiosa.

"O sensitivo durante o transe se despoja, como já dissemos, de sua lógica cotidiana, de sua razão e dos comandos racionais sobre seu corpo. O cavalo rejeita a personalidade definida por seu condicionamento histórico e permite a manifestação de uma personalidade-símbolo que represente um elo com a totalidade de personalidades" (Lima, 1997).

O Transe Mediunista constitui-se, então, de uma rede complexa de processos mentais, que deverão estar sob comando do medianeiro, caso este esteja sob o interesse de fazer com que suas vivências mediúnicas e religiosas sejam caraterizadas pelas possibilidades de enriquecimento de seu patrimônio interior.

"Temos de reconhecer, dessa forma, duas maneiras diferentes de participar de uma religião. Uma delas diz respeito aos que a cumprem ou seguem apenas socialmente, dela se utilizando como degrau de ascensão no grupo. A outra maneira de perceber a religião implica viver os processos simbólicos do inconsciente, isto é, através da experiência mística. Por um lado, a religião apresenta-se meramente ética e formal, exterior, consuetudinária, atuante ao nível social, sem maior significado psicológico. Por outro, apresenta-se essencial e interior, com origens na psique e atuante como técnica de transformação da alma. Quando assumida por força de vocação, a religião age como comunicação com o universo psíquico. Ao falarmos das relações do homem com seu inconsciente que, para a mentalidade natural, a realidade de um objeto só se prova por sua similitude com um modelo sagrado. Este carateriza uma hierofania, na medida em que designa um caso particular de manifestação da energia cósmica capaz de exprimir o real. Não uma falsa noção do real desprovida de emotividade, mas o real qualitativamente reconhecido pela experiência e captado pela emoção" (Lima, 1997).

Sabemos que o intercâmbio entre mundos (físico e espiritual) sempre existiu em todas as épocas da humanidade, constituindo-se episódio inerente a condição humana na Terra (como coletividade de espíritos encarnados). No entanto, as práticas do intercâmbio carecem de ampliação de conhecimentos em torno de sua realidade e dos seus campos de atuação, de maneira que os seus experimentadores (médiuns) possam também ampliar o seu saber, fazendo-se mais úteis e conscientes de seu papel e responsabilidades.

Conforme já tratamos em artigos anteriores, quando falamos do fenômeno de Incorporação, entendemos que dentro do Transe, construído e sustentado positivamente após a integração dos estágios estruturantes já mencionados, existe uma seriação de eventos possíveis, sendo a comunicação espiritual uma dentre estas várias possibilidades.

Também dissemos que o ponto mais importante deste processo, conforme nosso parecer, é o da Comunhão Espiritual, na qual o indivíduo-médium troca, em seu campo psíquico, conteúdos de ordem energética com seu Guia Espiritual, desenvolvendo seu Campo Mediúnico que posteriormente irá facultar-lhe a comunicação. No entanto, primordialmente, sua função é a de ampliar-lhe o Campo Intuitivo, fornecendo elementos para desenvolver sua condição captativa, integrando-a em sua expressão criativa, canalizando-a, a princípio, na elaboração das imagens psíquicas que servirão como formadoras da experiência simbólica das Entidades, as quais passará a manifestar ao longo de sua vivência religiosa, nas giras de Umbanda.

Dessa forma, o Transe Mediunista concorre para a construção psíquica de nível superior para seu experimentador, contribuindo para o desenvolvimento de funções psicológicas de caráter integrador, possibilitando-lhe vivenciar suas experiências, dentro e fora da vida religiosa, de forma a reter em seu mundo interior vivencias que sejam relevantes para si, dotando-as de sentido existencial e dilatando-se a esperança diante da Vida e a confiança na sobrevivência ao fenômeno da desencarnação.

Mais do que "poder mágico", a experiência do Transe Mediunista é a busca pela realização numinosa, a Criatividade do Espírito, em direção do encontro com a Realidade Última que intui estar ínsita e totalmente presente em-si: Deus.

Saravá a todos!

Para o entendimento integral do tema Processos Mentais e o Transe Mediunista, leia:

Bibliografia Consultada:
Sakamoto, C.K. (1999). A Criatividade sob a luz da experiência (tese de doutorado)
Lima, Bennto de (1997). Malungo Decodificação da Umbanda
Jung, C.G. (1974). Psicologia e Religião
                 (1970). A Natureza da Psique
Goswami, Amit (2001). A Física da Alma




quinta-feira, 1 de março de 2012

Processos Mentais e o Transe Mediunista (Parte II)


Por: Gregorio Lucio

Em continuidade ao post Processos Mentais e o Transe Mediunista (Parte I ) , prosseguiremos relacionando os estágios estruturantes do Transe de caráter Mediunista. Enfocaremos, assim, o 4º e o 5º estágios.

Tornar-se ciente da sucessão de emoções, lembranças, pensamentos, imagens, linguagens e sensações, implica no processo da Consciência a dobrar-se sobre si mesma, intensificando a noção do eu como um processamento subjetivo que mantém o indivíduo no centro da experiência mental, integrando, por intermédio da função seletiva do mecanismo atencional, o conjunto de processos mentais que servirão para a sua presente experiência psíquica, não desvinculando-lhe do contato com o meio no qual se encontra (o médium não perde o contato com o ambiente).

"Milhões de itens [...]são apresentados aos meus sentidos e nunca entram propriamente na minha consciência. Por que? Por que não tem interesse para mim. Minha experiência é aquilo que eu concordo em prestar atenção [...]. Todos sabem o que é a atenção. É a tomada de posse pela mente, de forma clara e vívida, de um dentre o que parecem ser vários objetos possíveis simultâneos ou linha de pensamento". (William James apud Lima, 2005)



Atenção - Percepção (4º estágio estruturante) localizarão, no nível consciente, as ocorrências psíquicas e corporais que servirão para caracterizar o momentum do entrelaçamento com as irradiações da Personalidade Espiritual que estreita vinculação com o psiquismo mediúnico.

Em torno da Atenção, devemos conceituá-la como "a capacidade do indivíduo responder predominantemente os estímulos que lhe são significativos em detrimento de outros". (Lima, 2005). Consideremos, então, que a atenção é um processo mental, cujos seus mecanismos de funcionamento estão predominantemente ligados ao aparelho cerebral. Ou seja, sua elaboração possui dominância fisiológica.

A atenção possui 3 características importantes, referidas por William James como:

"- A possibilidade de se exercer um controle voluntário da atenção;
- Inabilidade em atender diversos estímulos ao mesmo tempo, ou seja, o caráter seletivo e focalização;
- Capacidade limitada do processamento atencional". (James apud Lima, 2005)

Adicionalmente, devemos ter em conta que "[...] aquilo que percebemos depende diretamente de onde estamos dirigindo nossa atenção. O ato de prestar atenção, independente da modalidade sensorial, aumenta a sensibilidade perceptual para a discriminação do alvo, além de reduzir a interferência causada por estímulos distratores" (Pessoa apud Lima, 2005). Em decorrência disso, na construção do estado alterado de consciência, os mecanismos atencionais  sustentam a percepção do somatório de ocorrências sucedidas tanto no campo psíquico quanto fisiológico. 

A possibilidade de perceber, está diretamente ligada a capacidade atencional do indivíduo. De tal sorte que, podemos conceituar a Percepção como significados atribuídos pelo cérebro as informações obtidas pelos órgãos dos sentidos.

Ambas (atenção e percepção) irão veicular-se ao campo da memória e emoção, as quais detém a força energética capaz de lançar ao nível da consciência os resultados obtidos pela percepção, somados à complexidade psíquica do mecanismo de Apercepção (a qual também é um processo mental). Dessa forma, a Percepção é o resultado predominantemente fisiológico do processamento das informações obtidas do meio (por via dos órgãos sensoriais), enquanto a Apercepção seria a sua contraparte, entretanto de predominância psíquica. Conforme diz-nos C.G. Jung (1970), a respeito da relação Percepção/Apercepção:

"[...]Nós vemos, ouvimos, apalpamos e cheiramos o mundo, e assim temos consciência do mundo. Estas percepções sensoriais nos dizem que algo existe fora de nós. Mas elas não nos dizem o que isto seja em si. Isto é tarefa, não do processo de percepção, mas do processo de apercepção. Este último tem uma estrutura altamente complexa. Não que as percepções sensoriais sejam algo simples; mas sua natureza complexa é menos psíquica do que fisiológica. A complexidade da apercepção, pelo contrário, é psíquica. Podemos identificar nela a cooperação de diversos processos psíquicos".

"Na verdade. não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos, misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não retemos mais do que algumas indicações, simples 'signos' destinados a nos trazer à memória antigas imagens". (Bergson apud Leonardelli, 2008)

Consequentemente, a Apercepção seria o mecanismo mental pelo qual aqueloutras significações atribuídas às nossas impressões nos chegam por vias não relacionadas aos órgãos dos sentidos. Os conteúdos do inconsciente, impulsionados pela memória-emoção, ligam-se, pela ideação (pensamento-imagem psíquica), às percepções que obtemos do ambiente em que nos encontramos e que vamos registrando sensorialmente (cores e luzes que vemos no ambiente do terreiro, sons que ouvimos, cheiros e gostos que sentimos, tudo aquilo que tocamos, etc). Essa ligação entre o experienciado "fora-de-si" e o "em-si" promoverá a integração dos aspectos conscientes e inconscientes e a dissolução da cisão, mesmo que breve, na Consciência, do dualismo entre sujeito-objeto. Dessa forma, dentro do complexo do ser (médium), o ambiente e seus elementos sacralizam-se, assim como o seu próprio corpo. A dimensão espiritual contata, de maneira inteligível, a dimensão física.

Entretanto, a culminância deste estado último de completude só pode concluir-se e sustentar-se pela utilização coordenada da atenção, a concentração, pela qual o médium poderá selecionar os estímulos recebidos e mantê-los no centro de seu interesse, sabendo mediar o seu foco atencional para não perder-se em distrações, ao mesmo tempo não alienando-se do que se passa ao seu redor, conforme veremos adiante.

Importa considerarmos que, até o quarto estágio, os processos mentais construídos, por si só, já desencadeiam estados alterados de consciência, verificando-se transes mais ou menos pronunciados, no entanto, afigurando-se um tanto oscilantes, fugidios, os quais embora conservem no psiquismo reminiscências e no corpo impressões de sua ocorrência, ainda não são suficientes para garantirem apercepção e apreensão conscientes do contato com as dimensões mais profundas do ser e com a experiência espiritual.

Prolongando-se a experiência integrada nestes 4 estágios, enseja-se a passagem para um novo estágio
(quinto estágio estruturante), composto pelo par Concentração - Vontade.

Os mecanismos da Concentração e da Vontade passarão a agir como os direcionadores dos registros até então obtidos por processos mentais predominantemente inconscientes, automatizados. Neste novo estágio, a intervenção consciente do medianeiro  deve passar a conduzir o todo processado até o momento, de maneira a produzir efeitos benéficos para as estruturas do psiquismo, bem como sustentá-lo por um espaço de tempo mais dilatado, escolhendo e extraindo do conjunto de percepções, aquelas que merecerão a importância adequada em vista do objetivo almejado.

Assim, a Concentração funcionará como recurso a comando do ser, no qual estarão contempladas a Percepção e Atenção, as quais passarão a ser coordenadas pela personalidade mediúnica, colocando no centro da atenção (dai o termo Concentração) os momentos próprios de cada parte do trabalho
espiritual que está sendo realizado, alternando a atenção para o que se passa em seu mundo íntimo e no ambiente, de forma a entender os instantes propícios para a sua manifestação, seja ela de qualquer ordem, distinguindo a hora certa de conversar, de se portar desta ou daquela maneira, de entregar-se ao transe, de manter uma conduta adequada, atenta, e inclusive de respeito pelo local onde se encontra e pelas pessoas que comungam do trabalho (demais médiuns e, principalmente, assistidos).

"[...] o sistema nervoso é capaz de manter um contato seletivo com as informações que chegam através dos órgãos sensoriais, dirigindo a atenção para aqueles que são comportamentalmente relevantes e garantindo uma interação eficaz com o meio". (Brandão apud Lima, 2005). Entretanto, sem o contributo da Concentração aliada a Vontade - conforme veremos adiante -, o processo automatizado de seleção de percepções, não produzirá por si mesmo um resultado comportamental satisfatório para a conduta adequada do ser onde quer que se encontre. A Postura do Medianeiro, condizente ao seu papel Ético-religioso, implica na aplicação de ordens Intelecto-Morais sobre a sua conduta. Em palavras simples e diretas: o cérebro por si só nunca será capaz de tornar alguém educado ou comportamentalmente adequado, a não ser por processos Educativos e Éticos que se receba (Educação) e que se proponha vivenciar (Ética).

Prosseguindo. Acompanhada da Concentração, a Vontade desempenhará um papel fundamental na
sustentação do estado mental e psíquico oportuno para a concretização de um determinado fim. A Vontade caracteriza-se como ato mental que, após o reconhecimento dos conteúdos derivados das instâncias relacionadas aos estágios estruturais anteriores, produtos variantes da ideação mnemônico-emocional (pensamento-imagem; memória-emoção),  identifica a necessidade de realização de um objetivo e conclui o processo mental em uma ação dirigida, intencionando a compensação felicitadora. A Vontade, portanto, é processo mental pró-ativo, a qual deve ser conquistada e desenvolvida mediante a construção do hábito de interessar-se por tudo aquilo quanto provoque mudanças (benéficas, obviamente) na existência do ser e estabelecer motivações para consegui-lo.

O exercício da Vontade é aplicado na troca de hábitos doentios e perturbadores para outros que produzam saúde e paz interior, na conquista de experiências que aprofundem o ser no encontro com ideais enobrecedores.

Quanto mais repete o exercício da Vontade, maiores se tornam as possibilidades de realização e mais ampla sua intensidade e predominância no comportamento.

Vale ressaltar que as funções mentais tratadas aqui implicam num aprendizado, o qual ao ser repetido e compartilhado com o outro, uma vez que depende totalmente da integração com o meio, forma um processo educativo. Vemos que estamos formando, dinamicamente, uma Educação (Educação Mediúnica) e estabelecendo uma Disciplina (Disciplina Mediúnica) em torno de nossas vivências psíquicas, conduzindo-nos a construção de um Saber, a ser integrado em nossas práticas e, consequentemente, em nossas vidas dentro e fora do intercâmbio espiritual.

Saravá a todos!



Bibliografia Consultada:
Lima, Ricardo Franco (2005). Compreendendo os mecanismos atencionais (artigo científico)
Morini, C.A.T. (2007). Ritual de Umbanda - A Influência dos Estímulos Somato-Sensoriais na indução do Transe Mediúnico (tese de mestrado)
Jung, C.G. (1970). A Natureza da Psiquê

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Processos Mentais e o Transe Mediunista (Parte I)


Por: Gregorio Lucio

Introduziremos, neste novo post, o tema Processos Mentais e o Transe Mediunista, como um conteúdo referencial e iniciador de uma sequência de estudos que estabeleceremos posteriormente, tratando do Desenvolvimento Mediúnico na Umbanda.

Na elaboração deste material, acabamos por desenvolver um texto bastante amplo, dessa forma dividiremo-lo em 3 partes com o mesmo título, sendo essa a sua primeira parte, na qual contemplaremos os estágios iniciais estruturantes do transe, além de estabelecer uma idéia sucinta em torno deste. Suas partes complementares serão publicadas em data futura.

Devemos encarar a questão em torno dos Processos Mentais envolvidos na construção do Transe Mediunista, observados na prática do intercâmbio com a realidade transcendente, como importante e necessário ponto de estudos, merecedor de maior desenvolvimento, capaz de produzir um Saber suficientemente estruturado, a respeito de como tais processos relacionam-se e se integram para a culminância do Transe.

Nossa intenção é a de contribuir, humildemente, com a colocação de alguns pontos extraídos de nossos estudos, reflexões e observações em torno de nossos próprios estados de transe, na expectativa de sermos úteis ou motivadores de mais aprofundadas perquirições a respeito.


Desejamos, conforme o já dissemos, estabelecer algumas relações referentes aos processos mentais que estão presentes, segundo nosso parecer, na construção do estado de transe, os quais verificam-se sendo processados em ambas as instâncias psíquicas do ser, quais sejam o consciente e o inconsciente.

Seguindo nossas reflexões, depreendemos que a prática mediunista obedece a um mecanismo de construção dinâmica dos processos mentais que elaborarão outros, os quais deverão sucedê-los no contato com a dimensão psíquica do indivíduo, de maneira que este transitará por diversos estágios de processamento de sensações e estímulos de variada ordem, emoções, pensamentos e imagens psíquicas, até o momento no qual efetuar-se-á a conjugação de um estado psíquico e mental totalizador, por cujo seu continuum ocorrerá o transe (entendido por nós como o ponto integrador de uma rede complexa de processamento mental, de cunho psicofisiológico) e seu consequente intercâmbio com a dimensão espiritual (interna e transcendente ao indivíduo).

Os processos mentais são elementos constitutivos da consciência, sendo suas estruturas funcionais, e atuam como atividades instrumentais no homem, incluindo em si um caráter de nível social, realizados coletivamente. Assim, tais processos mentais definem o funcionamento da mente humana de uma maneira ampla. Estão englobados como processos mentais: funções sensório-motoras, emoção, pensamento, linguagem, memória, imaginação, percepção, atenção, concentração, vontade, intuição, criatividade, transe, entre outros.

Observamos serem estes os processos mentais presentes e configurados como a estrutura de base criativo-construtiva da experiência espiritual tida como Transe Mediunista.

Na base desta composição estruturante, identificamos o par Memória-Emoção como processos mentais propulsionadores (primeiro estágio) das demais ocorrências psíquicas. Primeiramente, devemos compreender a memória como uma função situada tanto no psíquico quanto no somático, emotivo-cognitiva -vinculada a uma ampla rede de associações de caráter sensório e emocional -, sugerindo o  "retorno da experiência (e do sujeito, enquanto formado pela experiência) ao passado, até o desligamento completo do real" permeado pela reelaboração da experiência vivida, no entanto, acrescida de novos elementos vivenciais atuais do indivíduo, implicando em uma "[...] idéia de atualização do vivido pelo presente [...]". (Leonardelli, 2008). Assim, memória implica na transposição contínua para o presente das vivências contidas no complexo psíquico do ser, avançando sobre as barreiras do tempo e do espaço.

Os arquivos registrados pela Individualidade Espiritual ao longo de sua jornada pelo ciclo das reencarnações, experiências anteriores e a própria reminiscência de sua origem primordial estão contidas nos processos mnemônicos, sedimentados nas profundezas do inconsciente.

Nossos registros mnemônicos ligam-se ao nosso psiquismo por intermédio da experiência afetiva vivenciada na interação com o meio. Benntto de Lima (1997), ao referir-se as experiências de ordem espiritual (ou mística) e sua relação com a emoção, diz-nos que "o que caracteriza esse processo mental [...] é precisamente a emoção concentrada nos conceitos de: próximo, grupo e espécie. A variação da intensidade emocional das vivências determina os diferentes tipos de experiência", e ainda que "[...] estas [experiências místicas ou espirituais] se inserem, por conseguinte, num processo histórico ao mesmo tempo individual e social. E não apenas no processo histórico social de determinada época, mas ao longo da existência da espécie. Depois de passar por uma experiência psíquica radical, quase sempre também mística, o indivíduo busca sua identidade na realização com o grupo, no encontro com o próximo".

A emoção surge, então, como o elemento capaz de gerar a vinculação do ser ao seu próprio mundo psíquico e ao mundo de relação, cuja experiência com o outro (no início com a mãe e depois, em diversos níveis, com o meio social), sedimenta seu enraizamento na realidade experimentada em-si e ao mesmo tempo fora-de-si, dimensão afeta à alteridade, ao outro, as chamadas relações interindividuais (Camargo, 1999).

A integração da paridade memória-emoção revelar-se-á a consciência por intermédio de um segundo par estruturante (segundo estágio), seu sucessor: Pensamento - Imagem (Imaginação).

Em continuidade ao ato mnemônico-emotivo (de processamento inconsciente) evidenciam-se à consciência, pelo fluxo do pensamento, a conjunção de imagens (portadoras de elementos de memória e emoção) que preenchem os espaços da rede psíquica, formando a "tela mental" que passa a ser populada pelas ideações pertinentes a condição interior do indivíduo.

Vejamos que a sucessão de estágios entre processos mentais não anula aqueles que servem aos primeiros níveis. Ao contrário, o mecanismo visa uma manutenção energética dos conteúdos da consciência, pela soma de vários níveis de processamento psíquico, integrando-os em um processo de sinergia. Portanto, o estado mnemônico-emocional, além de servir de base para o surgimento do estágio seguinte (pensamento-imagem) também determinará a sua intensidade e configuração.

Ao ponto em que estão integrados os dois primeiros pares estruturantes (memória-emoção; pensamento-imagem), o correspondente estágio sucedâneo formará-se, ocupando a consciência com novas informações e conteúdos a serem experienciados e integrados. Este terceiro par estruturante se formará pela junção da paridade Linguagem-Funções Sensório/Motoras.

A partir daí, o psiquismo passa a comunicar-se diretamente ao corpo, por intermédio de sensações e impulsos (ou relaxamento) de ordem motora, assim como pela intrusividade de elementos dotados de significado e qualidade semântica, portanto, inteligíveis. Salientamos que a ideação, iniciada na irrupção do par pensamento-imagem, assume caráter mais amplo e intenso neste novo estágio, comunicando-se por meio de idéias inteligíveis e expressões significantes (linguagem), observadas na postura corporal, gestualidade e, até, em alterações facias (funções sensório-motoras), como personificação e presentificação do estado alterado de consciência (transe) que já se faz pronunciado.

O transe, de uma maneira geral e introdutória, pode dar-se por diferentes motivos e necessitamos conhecer as suas possíveis naturezas para que possamos entendê-lo como um processo mental amplo e quando este está ligado a experiências transcendentes (não necessariamente mediúnica ou mediunista) ou, quando deriva de outra ordem de fatores.

Entre os estados de transe originados por causas diferentes das experiências místicas ou espirituais, podemos identificar aqueles ocasionados por substâncias químicas ou farmacológicas; por bebidas alcoólicas; drogas diversas (como a cocaína, a maconha, LCD, etc); ausência de oxigênio no sangue (anóxia); doses oscilantes de glicose no sangue (como no caso de diabéticos); distúrbios metabólicos; hipnose; epilepsia; etc.

De igual maneira, o transe de ordem espiritual também pode processar-se como sendo de caráter perturbador (no caso de uma obsessão espiritual) ou, pelo menos, como um mecanismo desordenado que assoma à realidade do indivíduo seu portador, carecendo de aprendizado e comando de seus mecanismos para que possa lograr um estado de normalidade e adaptação a esta nova experiência psíquica, propiciando inclusive possibilidades maiores no campo da conquista e plenificação interior. Ressaltamos que até este terceiro estágio, as ocorrências psíquicas podem dar-se (como efetivamente ocorre, sendo mais comum do que se imagina) passando por um processamento totalmente inconsciente no indivíduo, culminando num transe, e por isso mesmo até este nível, não há uma distinção entre a experiência saudável do estado alterado de consciência (mediúnica ou não) e a de caráter perturbador.

Assim, "a passagem à consciência é o início de uma etapa superior ao desenvolvimento psíquico. O reflexo consciente, diferentemente do reflexo psíquico próprio do animal, é o reflexo da realidade concreta [...] que distingue as propriedades objetivas estáveis da realidade". (Leontiev, 1978).

Embora A.N. Leontiev fundamente seu pensamento com base no paradigma do realismo materialista, entendemos ser a sua assertiva de valor inestimável para chegarmos a um entendimento de que somente a partir do momento em que os conteúdos psíquicos passam a ser percebidos de maneira consciente pelo ser humano, é que poderão ocorrer os próximos níveis de desenvolvimento do psiquismo humano. Tratando especificamente dos processos mentais e o transe, podemos dizer que somente a partir do instante em que o ser coloca sob o seu comando seus processos mentais é que poderá lograr atingir níveis mais profundos de suas experiências espirituais, conservando sua integridade psíquica e, inclusive, utilizando-se de tais experiências como recursos para o seu amadurecimento como ser humano e Espirito que É.

Portanto, a partir do terceiro estágio, deverão estabelecer-se uma nova ordem de processos mentais estruturantes do transe, uma vez que estamos referindo-nos àquele que se caracteriza como constituído de higidez psicofisiológica, ou seja, possuidor de características saudáveis, não-patológicas.

O transe, que passará a ocorrer sob o domínio de seu experimentador, deverá, além dos 3 pares estruturantes já citados, lastrear-se em 3 próximos níveis de construção (Quarto, Quinto e Sexto estágios estruturantes), sobre os quais falaremos nos dois próximos artigos, quais sejam:

4º Estágio: Percepção - Atenção;
5º Estágio: Concentração - Vontade;
6º Estágio: Intuição - Criatividade;

Finalizaremos falando do próprio Transe Mediunista: 7º e último estágio, ponte para a Consciência Mediúnica.

Saravá a todos!


Bibliografia Consultada:
Camargo, Denise (1999). Emoção, Primeira forma de comunicação (artigo científico)
Leonardelli, Patricia (2008). A Memória como recriação do vivido (tese de doutorado)
Lima, Benntto de (1997). Malungo - Decodificação da Umbanda
Leontiev, A. N. (1978). O  desenvolvimento do psiquismo