domingo, 18 de março de 2012

Desenvolvimento Mediúnico na Umbanda


Por: Gregorio Lucio

Questão amplamente discutida e imersa em diversos discursos que procuram explicar e dar-lhe uma diretriz satisfatória, o Desenvolvimento Mediúnico afigura-se como um estágio muito importante na vida religiosa do adepto de Umbanda, candidato a médium, uma vez que esta fase implicará diretamente na construção da própria identidade mediúnica do indivíduo, bem como estará vinculada ao todo de seu complexo psíquico, carecedor de atenção e cuidados, pois sua elaboração e vivência dentro do campo religioso assumirão influência direta sobre a constituição psicológica do neófito umbandista.

Iniciaremos, neste momento, a série de estudos "Desenvolvimento Mediúnico na Umbanda".

Desdobraremos o tema "Desenvolvimento Mediúnico na Umbanda", abordando a questão em 5 textos, a serem publicados em data futura, especificando a dinâmica e o mecanismo das funções psíquicas envolvidas no tentame da prática mediunista até o atingimento e completude da Consciência Mediúnica.

Aprofundaremos, então, nossos estudos enfocando  a perspectiva psicológica sob a qual dão-se as adaptações das estruturas psíquicas do médium, de maneira a fazer surgir a experiência simbólica das entidades, por meio do transe, com o consequente atingimento da função mediúnica, salvaguardando o eixo e o centro da individualidade medianeira.


Entretanto, gostaríamos de tecer algumas considerações introdutórias a respeito da questão do Desenvolvimento Mediúnico, para podermos situar nossa ótica em torno dessa problemática e refletir sobre a necessidade de estudos a respeito da função mediúnica, entendendo como essa faculdade mental está relacionada ao contexto religioso umbandista e de quais traços ela se reveste no intercâmbio mediunista dentro do circulo religioso em questão, sob as mais diferentes gradações.


Existem muitas explicações, tratadas em livros e nos discursos presentes nos terreiros, visando o esclarecimento em torno da necessidade do desenvolvimento da capacidade mediúnica do indivíduo com vistas a promover a sua "evolução" como espírito, dando cumprimento a uma missão assumida no passado. Da mesma forma, o meio religioso umbandista procura vincular ao discurso de justificava da necessidade do  trabalho mediúnico, práticas e métodos os mais diversos para que se dê tal mister. No entanto, não nos ateremos aqui a avaliar tais práticas ou a validade destes discursos que tornaram-se "senso comum" dentro da Umbanda. Nossa intenção será a de abordarmos essa questão sob uma ótica psicológica, identificando as bases psíquicas envolvidas na elaboração dessa experiência religiosa e a sua preponderante relação com o campo subjetivo do adepto umbandista.

Realizaremos uma interface com alguns aspectos pertinentes ao conceito da mediunidade e suas particularidades, entretanto, enfocaremos a perspectiva psicológica como sendo nosso interesse predominante.

Justificamos tal intenção pela convicção que temos, a respeito de alguns mecanismos que envolvem a questão do mediunismo de Umbanda, segundo a qual entendemos que toda e qualquer experiência medianímica pertencente ao mundo interior do ser humano encarnado ocorre obedecendo a um processo de construção, cuja sua elaboração dá-se por um sistema de causalidade, em que aspectos mentais e psíquicos vinculam-se e são modulados pelo aparelho cerebral, o qual manifesta no organismo e na relação com o meio a sua realidade. Assim, todo e qualquer elemento que constitui-se como resultado do intercâmbio mediunista, e até  mesmo a própria formação subjetiva do indivíduo, deverá passar, condição sine qua non, pelo campo mental, psíquico e pelo aparelho cerebral para que possa ocorrer e interagir no meio em que vivemos. De tal sorte que as funções psicológicas determinarão profundamente os resultados de toda e qualquer experiência realizada pelo ser, seja no aspecto de manifestação da função mediúnica, seja nos seus resultados compensadores que servirão como recursos de engrandecimento e transformação interior.

A realização da experiência mediunista obedece a um processo de aprendizado a ser realizado pelo adepto, ao longo de sua jornada espiritual. Este deverá passar por vários momentos em seu aprendizado ritual, pelos quais estará cada vez mais integrado a vida religiosa dentro de seu terreiro. A presença frequente e interessada  nos ritos da casa, nas giras, garantem ao médium o cabedal de experiências que aos poucos guardará em sua memória, aprofundando seu conhecimento e contato com os fundamentos da casa, avançando os degraus de sua iniciação e aprimorando sua sensibilidade psíquica.

O Aprendizado mediúnico funciona como elemento formador da identidade ritual do adepto, por cuja sua vivência deverá lograr o atingimento de níveis mais amplos de consciência perante si mesmo e sua vida, identificando na sua possibilidade mediúnica ensejo para a construção de estados íntimos plenificadores, saudáveis, para si e para a coletividade na qual transita e vive.

Por conta disso, o potencial medianímico deve ser entendido como constituído por grande carga energética, ligada ao campo psíquico e vital, provenientes da profundeza do Ser Espiritual que somos, emergindo à Consciência e manifestando-se por intermédio do organismo físico, passando pelas instâncias psíquica e mental (componentes do corpo perispiritual), as quais funcionam como estruturas de base e condutoras deste potencial, a ser convertido em faculdade mediúnica, sob o comando do médium, momento no qual a personalidade medianeira adquire consciência de si mesma e ruma em direção a transcendência do ego, na busca da libertação do ciclo kármico.

Disciplinar as forças medianímicas ordenando-lhe as expressões, lastreando-as em princípios Ético-Morais, compõe imperiosa necessidade para que a comunicação espiritual seja repleta em conteúdos enriquecedores e úteis para o aprimoramento pessoal e coletivo.

Educar a si mesmo é exigência para o desempenho mediúnico correto e de efeito salutar, desvinculado das relações perturbadoras, para isso aprendendo a identificar e comandar as suas próprias emoções e pensamentos, para que não se imiscuam em sua personalidade os traços inferiores que denotem maus hábitos e a má condução de conversações e atitudes que se mostram irrefletidas.

O desenvolvimento mediúnico, como experiência disciplinadora e educativa das capacidades do indivíduo, deve servir como um comunicador com seu mundo íntimo, a sua consciência, acerca da realidade premente que se encerra no aprimoramento pessoal, na libertação de hábitos arraigados, na superação de conflitos e limitações íntimas, com vistas a se lançar em um novo contexto de vida e possibilidades de amadurecimento    

Lembramos, conforme já vimos escrevendo (leia Processos Mentais e o Transe Mediunista), que transes ocorrem frequentemente, constituindo experiência compartilhada por muitas pessoas, no entanto, muitas vezes desvinculados de mais estreitas ligações com aqueles recursos que indicam o comando saudável de seu experienciador. Portanto, o fenômeno por si só não é capaz de fornecer ao campo íntimo a possibilidade de elevação do médium e daqueles que o buscam. Somente quando ligada a uma concepção de vida bem elaborada, pautada em princípios capazes de produzir benefícios psicológicos para a vida é que a medianimidade poderá operar a construção de valores duradouros, internos à tradição umbandista na qual se manifeste, assim como a orientação de cunho libertador, a qual não engana, não se liga a interesses pessoais ou ao comércio espiritual, visando primordialmente a alegria de servir e a conquista de valores nobres para o engrandecimento de todos.

O médium deve enriquecer seu patrimônio intelecto-moral para que possa encontrar em si as diretrizes de sua própria existência, o significado de sua própria vida, seguindo um caminho de exemplo e dedicação, pois seu papel religioso exige postura condizente com sua função, num compromisso responsável que deve esposar conscientemente, contribuindo para a sua boa imagem, assim como de seu terreiro e da religião que optou por abraçar.

O caminho da iluminação mediúnica ocorre na inter-relação do que se vive e aprende dentro do templo religioso, na prática mediunista, convertendo seus resultados para a vida cotidiana em seus vários papéis que cumpre desempenhar, como profissional, cidadão e elemento pertencente ou responsável por uma família.

Desenvolvimento mediúnico bem estruturado implica em disciplina e educação reunidas num aprendizado, cuja sua finalidade é a iluminação da consciência, por meio da qual será possível viver a própria existência carregada de expressões felizes e de momentos gratificadores. Logo, desenvolvimento mediúnico não é um breve trecho da história religiosa do adepto de Umbanda. É aprimoramento e ampliação das possibilidades de interação com a Vida, em quaisquer planos que esta se apresente. Dessa forma, desenvolvimento mediúnico é trabalho de evolução íntima que ao médium cabe cumprir, do primeiro ao último passo de sua jornada mediúnica.

O rito de Umbanda, desde que bem fundamentado em uma tradição sólida e ética, pode fornecer recursos auxiliares e influenciadores do campo psicológico do médium, para que possa conduzir os elementos da consciência, num processo de amadurecimento psicológico, ao integrá-los ao Self - seu originador -, realizando o seu vir-a-ser, iluminando-se e iluminando a sua trilha de vida, servindo como farol àqueles que lhe observam os passos e o visam como modelo e exemplo.

Formularemos, baseados em nossos estudos e reflexões, as correlações entre o desenvolvimento mediúnico e a estruturação psicológica da experiência espiritual para que possamos compreender melhor a finalidade da prática mediunista e seus efeitos na vida de seu experimentador. Em breve, trataremos os temas que se seguem:



Saravá a todos!

quinta-feira, 8 de março de 2012

Processos Mentais e o Transe Mediunista (Parte III)



Por: Gregorio Lucio


Finalizaremos, neste post, a tríade de artigos componentes do tema "Processos Mentais e o Transe Mediunista", abordando o último estágio estruturante e a culminância do Transe Mediunista (7º nível de atividade mental).

Quando o exercício do mediunismo na Umbanda solidifica-se por meio da utilização consciente dos recursos psíquicos e mentais que o médium possui a sua disposição (Concentração e Vontade), de maneira a conduzir os processos fenomenológicos da dinâmica psíquica, conjugadas no processo de captação (ideação mnemônico-emocional) e manifestação do estado mediúnico, torna-se sua decorrência a composição de um Campo Intuitivo, no qual são depositados, por assim dizer, os seus registros anímicos - ocasionados pelas experiências de contato com a dimensão espiritual (motivadoras da atividade criativa) -, assim como aqueles derivados da ligação telepática do medianeiro com os Espíritos que passam a comungar de seu campo psíquico, na condição de Guias e Orientadores Espirituais, propiciando as intuições de caráter mediúnico.

Sendo assim, entendemos que há nas instâncias superiores do inconsciente, uma formação sensível de conteúdos que surgem pela condição captativa da sensibilidade medianímica do Ser, cujos seus registros encontram-se em estado de latência e passíveis de serem acessados pela consciência, servindo de elementos estruturais para as novos contextos existenciais que o ser poderá vivenciar, devido a grande intensidade energética-emocional do qual são dotados. Esse, portanto, o Campo Intuitivo. A passagem dos conteúdos anímicos latentes no Campo Intuitivo implicam em dois direcionamentos psíquicos possíveis que se afigurarão como a ocorrência de intuições acentuadas ou de impulsos criativos.

O 6º estágio, portanto, encontra-se relacionado à Construção do Saber Espiritual, de caráter interior, via de acesso às experiências numinosas do Transe, cujas suas instâncias encontram-se situadas no par Intuição-Criatividade.

"[...] Certos conteúdos provêm de uma psique mais ampla do que a consciência. Com frequência, eles encerram uma análise, uma compreensão ou um saber de grau superior que a consciência do indivíduo seria capaz de produzir. O termo mais apropriado para designar tais acontecimentos é: intuição" (Jung, 1974).

A Intuição, embora surja não como decorrência do processo intelectivo, mas como fenômeno mental espontâneo, necessita da integração dos processos citados anteriormente (ver:  Processos Mentais e o Transe Mediunista) para que sua apercepção possa traduzir-se de maneira precisa ao consciente e ser compreendida pelo ego.

Os registros mediúnicos não fixam-se, em sua totalidade, na consciência do médium. Devido ao intenso tráfego de pensamentos e percepções que passam pelo seu campo psíquico - na conjugação com o psiquismo da Entidade Espiritual -, o organismo psíquico, a semelhança do cérebro, realiza uma filtragem daquilo que chegará a percepção consciente.

No entanto, nessa "troca" desenvolvida no relacionamento mental entre médium-Guia Espiritual, deposita-se, no Campo Intuitivo, uma carga muito maior de registros do que aqueles que chegam-lhe à consciência. Esses, que permanecem em estado latente no arquivo anímico, serão colhidos pela consciência por conta do ato voluntário do médium quando este buscará, no momentos de oração e de profundo recolhimento interior, a inspiração ou o entendimento necessários a um dado acontecimento, seja de ordem pessoal ou na busca de beneficiar aquele que lhe busca.

"A intuição decorre de um processo inconsciente, dado que seu resultado é uma idéia súbita, a irrupção de um conteúdo inconsciente na consciência. A intuição é, portanto, um processo de percepção, mas, ao contrário da atividade consciente dos sentidos e da introspecção , é uma percepção inconsciente" (Jung, 1970).  A "[...] intuição é um processo de percepção das possibilidades inerentes a uma dada situação". (Jung, 1978).

A elaboração daquilo que constituirá-se como intuição, provirá das instâncias superiores do inconsciente, porquanto seus conteúdos formadores serão aqueles conquistados por consequencia do ato da vontade concentrada em torno de determinada realização ou conhecimento. O médium, voltando-se sobre Si-mesmo, reelabora os conteúdos adquiridos (racionais e não-racionais), reordenando-os de forma totalmente inovadora, surgidos do Campo Intuitivo, no qual poderão ser abarcadas as dimensões mais profundas e abrangentes da Consciência.

Tais intuições poderão ocorrer em estados de pré ou pós-transe, bem como noutros momentos, sob forma de memórias/imagens espontâneas em estado anterior ou posterior ao sono e insights ocorridos em momentos de prece e oração.

O resultado emocional da influência do Campo Intuitivo sobre o médium carateriza-se por um estado de relaxamento, de sensação de paz e segurança intima, acompanhadas da fluência espontânea de pensamentos e imagens de caráter benéfico e direcionadores da conduta que deverá observar ou das palavras que deverá enunciar em favor de si ou do próximo.

Originária do Campo Intuitivo, a Criatividade assume a função de reorganizadora dos conteúdos latentes no arquivo psíquico, os quais conservam-se em estado potencial, por cujo seu devir, sua atualização, irrompem a consciência os novos contextos existenciais elaborados no ato criativo. 

"Criatividade é a expressão de um potencial humano de realização, que se manifesta através das atividades humanas e gera produtos na ocorrência de seu processo" (Sakamoto, 1999).

"Na criatividade, o novo se refere ou a um novo significado ou a novos contextos para se estudar o novo significado (Goswami, 1996 e 1999) [...] chamo-la de criatividade situacional. [...] Por outro lado [existe] a criatividade fundamental, pois envolve a descoberta de um novo contexto de pensamento ou invenções subsequentes" (Goswami, 2001).

No mediunismo, o campo criativo servirá como repositório de energias psíquicas que funcionarão como catalisadoras das construções mentais, emocionais e comportamentais do médium, pois quanto mais se proponha a agir de maneira voluntária, colocando-se como sujeito útil e produtivo, também galgará os degraus de sua própria construção mediúnica, aumentando suas possibilidades captativas e de apreensão da realidade espiritual.

Alçar metas enseja a realização saudável de conquista para a existência e a expressão do Ser criativo, o qual não estaciona na fixação dos condicionamentos sociais ou nas travas do desapontamento e do receio diante do desconhecido, ao contrário, passa e vai além, atingindo novas situações de vida que se lhe fazem de extrema compensação e completude interior.

Poder olhar a vida sob novos significados, o que não quer dizer uma fuga da realidade - antes sendo uma mudança de ótica sobre um dado acontecimento existencial -, propicia um enquadramento das estruturas psíquicas do Ser em novos contornos do seu existir, aumentando-lhe a resiliência diante das ocorrências que não pode mudar e angariando em seu íntimo aquelas ideações que lhe servirão de amparo para a contínua busca de seu significado existencial.

A Criatividade serve como recurso para compor o quadro subjetivo da Vida, daquele que atinge o processo psíquico criativo, pois é daí que retirará a inspiração para novas realizações, para a resolução de desafios os mais variados, além de garantir a si a experiência do prazer de produzir algo útil a sua e a vida de outrem.

Acrescentamos, no que diz respeito a Criatividade, que a elaboração de conteúdos correspondentes à ordem positiva e salutar para a vida emocional do Ser deverá estar pautada na atitude de Bem Querer e Bem Dizer a vida, pois não se pode esperar uma mente criadora de novos contextos existenciais, se esta não se desgarrar das impressões tormentosas a que nos prendemos e dos maus hábitos que adquirimos, por nossa limitação no discernimento das Leis da Vida.

Criar é voltar o olhar para dentro si e ser capaz de encontrar, no caos aparente do arquivo psíquico, os elementos capazes de pintar com novas cores a tela mental  que permeia nossas impressões e serve como pano de fundo para a experimentação de tudo quanto percebemos dentro e fora de nós.

Assim é que o filtro mediúnico, para que seja capaz de transmitir de maneira fidedigna as mensagens do mundo espiritual, necessita de boa dose criativa, conforme o conceito que ora apresentamos, uma vez que as construções da mente só atingem significados e possibilidades inovadoras quando são profundamente significantes para alguém.

A Criatividade e a expressão criativa cingem o ato de viver e elevam-no aos páramos do Ser e do Sentir, entregando-se ao labor do amadurecimento pelo produzir, sujeito ativo e integrado intimamente, para tornarem-se, mediante a injunção da morte (desencarnação), a força propulsora no Superconsciente que proporcionará a nossa "passagem" lúcida pelos portões de além-túmulo, bem como nossas possibilidades de escolha para novos contextos de vida, em nossa próxima encarnação.

Ocorrendo a quebra das fronteiras entre os aspectos racionais e não-racionais da experiência, por meio da Criatividade, formar-se-á uma visão integralizadora do conhecimento de Si e da Vida. Neste estágio incorrem os pródromos da Experiência Mística de caráter inefável e arrebatador, momento no qual desaparecerão as contradições intelectivas e a aparente separação entre eu e não-eu. O Ser que se É, integrará-se a um Todo, de onde retornará conservando uma forte e determinante impressão da transcendentalidade da Vida, diluindo-se os paradoxos e modificando o sentido de seu existir.

"Criar é o verbo por excelência do existir humano, já que Criar é para o ser humano, o mesmo que existir e o mesmo que evoluir. É sempre construir e expressar para os seres humanos e, o mesmo que ampliar a consciência do ser, do sentir e do agir. É penetrar o universo das infinitas possibilidades e a partir desta experiência, modelar parcelas de realidade, trazendo à luz da consciência, verdades humanas" (Sakamoto, 1999).

Saber criar é condição imperiosa para saber morrer e renascer. 

O potencial criativo humano, dentro da prática umbandista, consolida-se na ocorrência do Transe Mediunista (7º estágio de Processos Mentais), criatividade em expressão máxima, quando seu resultado é de completude interior naquele que o vivencia como o ápice da construção subjetiva da experiência religiosa.

"O sensitivo durante o transe se despoja, como já dissemos, de sua lógica cotidiana, de sua razão e dos comandos racionais sobre seu corpo. O cavalo rejeita a personalidade definida por seu condicionamento histórico e permite a manifestação de uma personalidade-símbolo que represente um elo com a totalidade de personalidades" (Lima, 1997).

O Transe Mediunista constitui-se, então, de uma rede complexa de processos mentais, que deverão estar sob comando do medianeiro, caso este esteja sob o interesse de fazer com que suas vivências mediúnicas e religiosas sejam caraterizadas pelas possibilidades de enriquecimento de seu patrimônio interior.

"Temos de reconhecer, dessa forma, duas maneiras diferentes de participar de uma religião. Uma delas diz respeito aos que a cumprem ou seguem apenas socialmente, dela se utilizando como degrau de ascensão no grupo. A outra maneira de perceber a religião implica viver os processos simbólicos do inconsciente, isto é, através da experiência mística. Por um lado, a religião apresenta-se meramente ética e formal, exterior, consuetudinária, atuante ao nível social, sem maior significado psicológico. Por outro, apresenta-se essencial e interior, com origens na psique e atuante como técnica de transformação da alma. Quando assumida por força de vocação, a religião age como comunicação com o universo psíquico. Ao falarmos das relações do homem com seu inconsciente que, para a mentalidade natural, a realidade de um objeto só se prova por sua similitude com um modelo sagrado. Este carateriza uma hierofania, na medida em que designa um caso particular de manifestação da energia cósmica capaz de exprimir o real. Não uma falsa noção do real desprovida de emotividade, mas o real qualitativamente reconhecido pela experiência e captado pela emoção" (Lima, 1997).

Sabemos que o intercâmbio entre mundos (físico e espiritual) sempre existiu em todas as épocas da humanidade, constituindo-se episódio inerente a condição humana na Terra (como coletividade de espíritos encarnados). No entanto, as práticas do intercâmbio carecem de ampliação de conhecimentos em torno de sua realidade e dos seus campos de atuação, de maneira que os seus experimentadores (médiuns) possam também ampliar o seu saber, fazendo-se mais úteis e conscientes de seu papel e responsabilidades.

Conforme já tratamos em artigos anteriores, quando falamos do fenômeno de Incorporação, entendemos que dentro do Transe, construído e sustentado positivamente após a integração dos estágios estruturantes já mencionados, existe uma seriação de eventos possíveis, sendo a comunicação espiritual uma dentre estas várias possibilidades.

Também dissemos que o ponto mais importante deste processo, conforme nosso parecer, é o da Comunhão Espiritual, na qual o indivíduo-médium troca, em seu campo psíquico, conteúdos de ordem energética com seu Guia Espiritual, desenvolvendo seu Campo Mediúnico que posteriormente irá facultar-lhe a comunicação. No entanto, primordialmente, sua função é a de ampliar-lhe o Campo Intuitivo, fornecendo elementos para desenvolver sua condição captativa, integrando-a em sua expressão criativa, canalizando-a, a princípio, na elaboração das imagens psíquicas que servirão como formadoras da experiência simbólica das Entidades, as quais passará a manifestar ao longo de sua vivência religiosa, nas giras de Umbanda.

Dessa forma, o Transe Mediunista concorre para a construção psíquica de nível superior para seu experimentador, contribuindo para o desenvolvimento de funções psicológicas de caráter integrador, possibilitando-lhe vivenciar suas experiências, dentro e fora da vida religiosa, de forma a reter em seu mundo interior vivencias que sejam relevantes para si, dotando-as de sentido existencial e dilatando-se a esperança diante da Vida e a confiança na sobrevivência ao fenômeno da desencarnação.

Mais do que "poder mágico", a experiência do Transe Mediunista é a busca pela realização numinosa, a Criatividade do Espírito, em direção do encontro com a Realidade Última que intui estar ínsita e totalmente presente em-si: Deus.

Saravá a todos!

Para o entendimento integral do tema Processos Mentais e o Transe Mediunista, leia:

Bibliografia Consultada:
Sakamoto, C.K. (1999). A Criatividade sob a luz da experiência (tese de doutorado)
Lima, Bennto de (1997). Malungo Decodificação da Umbanda
Jung, C.G. (1974). Psicologia e Religião
                 (1970). A Natureza da Psique
Goswami, Amit (2001). A Física da Alma




quinta-feira, 1 de março de 2012

Processos Mentais e o Transe Mediunista (Parte II)


Por: Gregorio Lucio

Em continuidade ao post Processos Mentais e o Transe Mediunista (Parte I ) , prosseguiremos relacionando os estágios estruturantes do Transe de caráter Mediunista. Enfocaremos, assim, o 4º e o 5º estágios.

Tornar-se ciente da sucessão de emoções, lembranças, pensamentos, imagens, linguagens e sensações, implica no processo da Consciência a dobrar-se sobre si mesma, intensificando a noção do eu como um processamento subjetivo que mantém o indivíduo no centro da experiência mental, integrando, por intermédio da função seletiva do mecanismo atencional, o conjunto de processos mentais que servirão para a sua presente experiência psíquica, não desvinculando-lhe do contato com o meio no qual se encontra (o médium não perde o contato com o ambiente).

"Milhões de itens [...]são apresentados aos meus sentidos e nunca entram propriamente na minha consciência. Por que? Por que não tem interesse para mim. Minha experiência é aquilo que eu concordo em prestar atenção [...]. Todos sabem o que é a atenção. É a tomada de posse pela mente, de forma clara e vívida, de um dentre o que parecem ser vários objetos possíveis simultâneos ou linha de pensamento". (William James apud Lima, 2005)



Atenção - Percepção (4º estágio estruturante) localizarão, no nível consciente, as ocorrências psíquicas e corporais que servirão para caracterizar o momentum do entrelaçamento com as irradiações da Personalidade Espiritual que estreita vinculação com o psiquismo mediúnico.

Em torno da Atenção, devemos conceituá-la como "a capacidade do indivíduo responder predominantemente os estímulos que lhe são significativos em detrimento de outros". (Lima, 2005). Consideremos, então, que a atenção é um processo mental, cujos seus mecanismos de funcionamento estão predominantemente ligados ao aparelho cerebral. Ou seja, sua elaboração possui dominância fisiológica.

A atenção possui 3 características importantes, referidas por William James como:

"- A possibilidade de se exercer um controle voluntário da atenção;
- Inabilidade em atender diversos estímulos ao mesmo tempo, ou seja, o caráter seletivo e focalização;
- Capacidade limitada do processamento atencional". (James apud Lima, 2005)

Adicionalmente, devemos ter em conta que "[...] aquilo que percebemos depende diretamente de onde estamos dirigindo nossa atenção. O ato de prestar atenção, independente da modalidade sensorial, aumenta a sensibilidade perceptual para a discriminação do alvo, além de reduzir a interferência causada por estímulos distratores" (Pessoa apud Lima, 2005). Em decorrência disso, na construção do estado alterado de consciência, os mecanismos atencionais  sustentam a percepção do somatório de ocorrências sucedidas tanto no campo psíquico quanto fisiológico. 

A possibilidade de perceber, está diretamente ligada a capacidade atencional do indivíduo. De tal sorte que, podemos conceituar a Percepção como significados atribuídos pelo cérebro as informações obtidas pelos órgãos dos sentidos.

Ambas (atenção e percepção) irão veicular-se ao campo da memória e emoção, as quais detém a força energética capaz de lançar ao nível da consciência os resultados obtidos pela percepção, somados à complexidade psíquica do mecanismo de Apercepção (a qual também é um processo mental). Dessa forma, a Percepção é o resultado predominantemente fisiológico do processamento das informações obtidas do meio (por via dos órgãos sensoriais), enquanto a Apercepção seria a sua contraparte, entretanto de predominância psíquica. Conforme diz-nos C.G. Jung (1970), a respeito da relação Percepção/Apercepção:

"[...]Nós vemos, ouvimos, apalpamos e cheiramos o mundo, e assim temos consciência do mundo. Estas percepções sensoriais nos dizem que algo existe fora de nós. Mas elas não nos dizem o que isto seja em si. Isto é tarefa, não do processo de percepção, mas do processo de apercepção. Este último tem uma estrutura altamente complexa. Não que as percepções sensoriais sejam algo simples; mas sua natureza complexa é menos psíquica do que fisiológica. A complexidade da apercepção, pelo contrário, é psíquica. Podemos identificar nela a cooperação de diversos processos psíquicos".

"Na verdade. não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos, misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não retemos mais do que algumas indicações, simples 'signos' destinados a nos trazer à memória antigas imagens". (Bergson apud Leonardelli, 2008)

Consequentemente, a Apercepção seria o mecanismo mental pelo qual aqueloutras significações atribuídas às nossas impressões nos chegam por vias não relacionadas aos órgãos dos sentidos. Os conteúdos do inconsciente, impulsionados pela memória-emoção, ligam-se, pela ideação (pensamento-imagem psíquica), às percepções que obtemos do ambiente em que nos encontramos e que vamos registrando sensorialmente (cores e luzes que vemos no ambiente do terreiro, sons que ouvimos, cheiros e gostos que sentimos, tudo aquilo que tocamos, etc). Essa ligação entre o experienciado "fora-de-si" e o "em-si" promoverá a integração dos aspectos conscientes e inconscientes e a dissolução da cisão, mesmo que breve, na Consciência, do dualismo entre sujeito-objeto. Dessa forma, dentro do complexo do ser (médium), o ambiente e seus elementos sacralizam-se, assim como o seu próprio corpo. A dimensão espiritual contata, de maneira inteligível, a dimensão física.

Entretanto, a culminância deste estado último de completude só pode concluir-se e sustentar-se pela utilização coordenada da atenção, a concentração, pela qual o médium poderá selecionar os estímulos recebidos e mantê-los no centro de seu interesse, sabendo mediar o seu foco atencional para não perder-se em distrações, ao mesmo tempo não alienando-se do que se passa ao seu redor, conforme veremos adiante.

Importa considerarmos que, até o quarto estágio, os processos mentais construídos, por si só, já desencadeiam estados alterados de consciência, verificando-se transes mais ou menos pronunciados, no entanto, afigurando-se um tanto oscilantes, fugidios, os quais embora conservem no psiquismo reminiscências e no corpo impressões de sua ocorrência, ainda não são suficientes para garantirem apercepção e apreensão conscientes do contato com as dimensões mais profundas do ser e com a experiência espiritual.

Prolongando-se a experiência integrada nestes 4 estágios, enseja-se a passagem para um novo estágio
(quinto estágio estruturante), composto pelo par Concentração - Vontade.

Os mecanismos da Concentração e da Vontade passarão a agir como os direcionadores dos registros até então obtidos por processos mentais predominantemente inconscientes, automatizados. Neste novo estágio, a intervenção consciente do medianeiro  deve passar a conduzir o todo processado até o momento, de maneira a produzir efeitos benéficos para as estruturas do psiquismo, bem como sustentá-lo por um espaço de tempo mais dilatado, escolhendo e extraindo do conjunto de percepções, aquelas que merecerão a importância adequada em vista do objetivo almejado.

Assim, a Concentração funcionará como recurso a comando do ser, no qual estarão contempladas a Percepção e Atenção, as quais passarão a ser coordenadas pela personalidade mediúnica, colocando no centro da atenção (dai o termo Concentração) os momentos próprios de cada parte do trabalho
espiritual que está sendo realizado, alternando a atenção para o que se passa em seu mundo íntimo e no ambiente, de forma a entender os instantes propícios para a sua manifestação, seja ela de qualquer ordem, distinguindo a hora certa de conversar, de se portar desta ou daquela maneira, de entregar-se ao transe, de manter uma conduta adequada, atenta, e inclusive de respeito pelo local onde se encontra e pelas pessoas que comungam do trabalho (demais médiuns e, principalmente, assistidos).

"[...] o sistema nervoso é capaz de manter um contato seletivo com as informações que chegam através dos órgãos sensoriais, dirigindo a atenção para aqueles que são comportamentalmente relevantes e garantindo uma interação eficaz com o meio". (Brandão apud Lima, 2005). Entretanto, sem o contributo da Concentração aliada a Vontade - conforme veremos adiante -, o processo automatizado de seleção de percepções, não produzirá por si mesmo um resultado comportamental satisfatório para a conduta adequada do ser onde quer que se encontre. A Postura do Medianeiro, condizente ao seu papel Ético-religioso, implica na aplicação de ordens Intelecto-Morais sobre a sua conduta. Em palavras simples e diretas: o cérebro por si só nunca será capaz de tornar alguém educado ou comportamentalmente adequado, a não ser por processos Educativos e Éticos que se receba (Educação) e que se proponha vivenciar (Ética).

Prosseguindo. Acompanhada da Concentração, a Vontade desempenhará um papel fundamental na
sustentação do estado mental e psíquico oportuno para a concretização de um determinado fim. A Vontade caracteriza-se como ato mental que, após o reconhecimento dos conteúdos derivados das instâncias relacionadas aos estágios estruturais anteriores, produtos variantes da ideação mnemônico-emocional (pensamento-imagem; memória-emoção),  identifica a necessidade de realização de um objetivo e conclui o processo mental em uma ação dirigida, intencionando a compensação felicitadora. A Vontade, portanto, é processo mental pró-ativo, a qual deve ser conquistada e desenvolvida mediante a construção do hábito de interessar-se por tudo aquilo quanto provoque mudanças (benéficas, obviamente) na existência do ser e estabelecer motivações para consegui-lo.

O exercício da Vontade é aplicado na troca de hábitos doentios e perturbadores para outros que produzam saúde e paz interior, na conquista de experiências que aprofundem o ser no encontro com ideais enobrecedores.

Quanto mais repete o exercício da Vontade, maiores se tornam as possibilidades de realização e mais ampla sua intensidade e predominância no comportamento.

Vale ressaltar que as funções mentais tratadas aqui implicam num aprendizado, o qual ao ser repetido e compartilhado com o outro, uma vez que depende totalmente da integração com o meio, forma um processo educativo. Vemos que estamos formando, dinamicamente, uma Educação (Educação Mediúnica) e estabelecendo uma Disciplina (Disciplina Mediúnica) em torno de nossas vivências psíquicas, conduzindo-nos a construção de um Saber, a ser integrado em nossas práticas e, consequentemente, em nossas vidas dentro e fora do intercâmbio espiritual.

Saravá a todos!



Bibliografia Consultada:
Lima, Ricardo Franco (2005). Compreendendo os mecanismos atencionais (artigo científico)
Morini, C.A.T. (2007). Ritual de Umbanda - A Influência dos Estímulos Somato-Sensoriais na indução do Transe Mediúnico (tese de mestrado)
Jung, C.G. (1970). A Natureza da Psiquê