terça-feira, 31 de dezembro de 2013

A Visão de um Adepto: Ancestralidade


Por: Gregorio Lucio


Na Umbanda, há um termo que corresponde diretamente a um referencial ético, norteador, nas relações humanas vividas e experimentadas dentro do terreiro: a ancestralidade.

Muito falamos sobre a ancestralidade no que se refere às origens histórico-culturais que serviram como base, ao longo do desenvolvimento da nossa sociedade, para o surgimento da Umbanda, tornando-a um fenômeno religioso autenticamente brasileiro. Falamos das etnias que serviram de tronco para a nossa identidade cultural, quais sejam os indígenas brasileiros, os negros africanos e os europeus.

Sabemos que a Umbanda herda da miscigenação e do amálgama de determinados aspectos das práticas religiosas de cada uma dessas matrizes formadoras o conteúdo que irá constituir seu imaginário, seus símbolos religiosos, sua cosmovisão e sua maneira de relacionar-se com a sociedade como um todo.

Mas, nossa idéia aqui é a de tratarmos, não do aspecto sócio-cultural da Umbanda, mas sim da inter-relação humana que vige dentro do templo religioso umbandista lastreado pelo princípio da ancestralidade.

Toda Casa de Umbanda tem um iniciador. Alguém, homem ou mulher, escolhido pelos Orixás, Guias e Protetores, que passa a carregar uma "missão" que é a de servir-lhes de intermediário, para que possam ser manifestadas as individualidades do mundo espiritual, a Aruanda, com o objetivo de trazerem esclarecimento e, principalmente, auxílio e conforto aos necessitados e aflitos.

Imaginando-nos há décadas atrás, sem ir muito longe, podíamos ver uma sociedade em que o desconhecimento a respeito dos fenômenos mediúnicos e espirituais era muito grande. A religião dominante, como ainda o é, o catolicismo, não comporta, pelo menos para a massa leiga, uma orientação aberta e de compreensão para com esse tipo de manifestação que é tão presente em nosso meio social. O transe, a manifestação mediúnica, eram sempre vistos como sendo um traço de loucura ou de possessão demoníaca, ou seja, como algo doentio.

Lembremos dos fundadores de nossos templos, nesse passado, em que a maioria deles nascia em meio a uma família humilde e ignorante (no sentido exato da palavra, desconhecedora) a respeito da sua condição de médiuns. Imaginemos o quanto essas manifestações trouxeram de angústia e de sofrimento para eles, por verem-se no meio de uma sociedade que não os compreendia e os via como doentes ou, pior, assediados pelo demônio.

São essas pessoas, em meio a tais adversidades, que vão conduzir as suas vidas aceitando a condição de compromisso para com o mundo espiritual, por meio de seus mentores e demais espíritos trabalhadores que o acompanham,  servindo como pontes entre a realidade da Aruanda Maior e a nossa vida terrena. Tudo isso para que o objetivo de ajuda mútua, envolvendo os habitantes dos dois "lados" da vida, possa se concretizar. Assumem as suas "missões", iniciam-se na prática mediunista de Umbanda, aceitam o seu caminho, cheio de flores e de espinhos, como seareiros das Leis de Umbanda e, com o passar do tempo e apesar de tantas vicissitudes, prosseguem e fundam suas tendas, terreiros, choupanas, centros, templos...

Enfim, são individualidades espirituais que se encarnam neste mundo trazendo compromissos e assumindo responsabilidades profundas, na condução de comunidades inteiras, zelando, junto de seus mentores, pelo andamento e pelo progresso interior de tantos quantos façam parte do grupamento de seguidores e filhos-de-santo de seus templos. Tornam-se referências ético-morais, mesmo sem o perceber, destas comunidades.

Assim, surgem os Templos de Umbanda que se espalham por todo o nosso país. Aqueles que estão estruturados por um trabalho sólido de atendimento e acolhimento das pessoas que o buscam, com o tempo, constróem em torno de si, uma comunidade fiel que o segue e apóia, tornando-se devota dos Orixás que são cultuados nestas Casas, bem como das entidades espirituais que "baixam" nesses terreiros, trazendo esperança, conforto e caridade para todos os filhos-de-fé.

O grupo de médiuns, a corrente mediúnica, que vai constituindo a força de trabalho destas casas, é formado por indivíduos com histórias e momentos diversos, conforme a realidade vivenciada por cada um. O processo de inter-relação entre as pessoas é enriquecido pelo diálogo, uma vez que a característica fundamental da Umbanda é a chamada "oralitura", ou seja, a transmissão oral do conhecimento e da história espiritual pertinente a cada casa de Umbanda é feita primordialmente pelo diálogo, pela palavra "falada", pela conversa com os mais velhos, pelo ensino que vem da preleção ditada pelo dirigente de cada templo.

Ao longo da história do terreiro, são construídas memórias, conforme as pessoas vivenciam as mais diversas formas da vida espiritual dentro do templo umbandista, seja no dia-a-dia das giras, nas ocasiões de festa e comemorações, nos ritos de iniciação, nos mutirões de limpeza e organização em prol da casa.

Dessa forma, antes de entrarmos no templo de Umbanda em que hoje nos encontramos, devemos lembrar que muitos outros já passaram por lá antes de nós, carregando esperanças, memórias, histórias, conhecimentos, aprendizados, felicidades, frustrações, alegrias, tristezas, realizações...vivências profundas, enfim, tornando-as ligadas àquele ambiente espiritual. Não são só os nossos Guias e Protetores que estão ligados às correntes espirituais de nosso terreiro. Também nós, aos poucos, vamos nos integrando naquela realidade espiritual e, conforme avançamos na história do templo, nosso sentimento de fé, de respeito e de carinho, também nos tornam parte daquele mundo de luz. Não à toa, nossos irmãos de terreiro, mais velhos, quando desencarnam, passam também a fazer parte das correntes espirituais da casa. E, em alguns casos, ao passar dos anos, chegam inclusive a integrar-se como espíritos trabalhadores da casa. Isso é possível,  embora dependa muito da condição espiritual de cada um, afinal, como disse Jesus: "Porque, onde estiver o teu coração, ali estará o teu tesouro".

Embora não seja possível fazermos uma relação direta e proporcional entre tempo e conhecimento, pois nem sempre o fato de realizarmos durante muito tempo alguma coisa, signifique que o estejamos fazendo da maneira correta ou com a qualidade devida, cabe-nos lembrar aqui que, na religião de Umbanda, o papel do mais velho, no caminho da iniciação espiritual da Umbanda é muito importante. 

Os exemplos do mais velho, a sua conduta, são diretamente observados e tendem a ser repetidos pelo médium mais novo. São os mais velhos que lastreiam e detém as memórias que podem ser transmitidas aos mais novos, fazendo com que, tal qual o Mestre Nazareno o fez, partilhando os pães e os peixes, o coração de cada seguidor também se preencha dessas recordações felizes, assim como dos conhecimentos fundamentais para o crescimento espiritual dos neófitos dentro do templo. Quando isso não ocorre, chega-se ao risco de fazer com que se esmoreça a fé, com que a responsabilidade dos papéis se dissolva, com que se perca o referencial e os valores que devem ser cultivados e ensinados, pelo exemplo, insistimos, dentro do ambiente religioso. Isso tudo por que o fortalecimento da fé e do significado espiritual precisa da experiência com o outro, por meio da partilha. Esse é o princípio da Comunhão, a qual deve existir entre os membros da corrente mediúnica, entre os filhos-de-santo, entre os filhos-de-fé.

Portanto, segundo a nossa humilde e limitada visão, devemos sempre lembrar que, antes de olharmos para as coisas e as pessoas que estão inseridas no templo de Umbanda ao qual nos vinculamos, estabelecendo críticas e exigindo mudanças, devemos sempre nos lembrar de que ali há uma história viva, na qual cada um de nós se insere, na medida do papel e das responsabilidades atribuídas a cada qual. Pessoas existem e existiram ali que construíram seu espaço e sua história espiritual naquele templo, e nós devemos respeitar tudo isso, mesmo que diante de dúvidas ou da impossibilidade de compreendermos totalmente determinadas questões, justamente devido à nossa inexperiência...são os passos que ainda não demos pelo caminho que outros, à nossa frente, já caminharam.

Lembremos da Ancestralidade que originou e sustenta a tradição de Umbanda que seguimos em nosso templo e não nos esqueçamos, em nossas orações, dentro e fora do nosso terreiro, de pedirmos a benção e a cobertura desses irmãos mais velhos que nos antecederam, junto de seus Guias e Mentores de Luz, nesta etapa da jornada espiritual.

Assim, peço a benção aos mais velhos e dirijo meu  preito de respeito aos mais novos, como eu.

Saravá a todos!

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