Por: Gregorio Lucio
A perspectiva metafísico-religiosa do universo umbandista caracteriza-se por estabelecer uma relação de interdependência dos seres desencarnados com os encarnados, implicando não só numa constante influência dos primeiros nas vivências psíquicas e relações sociais dos segundos, mas também no trânsito do sujeito psíquico/biológico (médium) pela dimensão espiritual, cuja experiência possibilita ressignificar constantemente sua compreensão da Espiritualidade e ampliar seu campo de ação como medianeiro.
Esse discurso sagrado cultual, no qual os Espíritos Guias e Protetores concorrem como "recursos" significantes da vivência religiosa do umbandista, faculta um campo de aprimoramento da Individualidade expressivo, sendo "[...]capaz de fortalecer laços interpessoais e intergeracionais e de promover concomitantemente inclusão social e integração psíquica"(Pasqualin, 2009)... aditaríamos, de nossa parte, a Ascensão Espiritual, como sendo o corolário da relação com os Guias e Protetores de Aruanda.
Estabelecemos nos dois parágrafos acima as premissas de que nos utilizaremos para dissertar a respeito deste novo texto, o qual trata do fenômeno do transe de Incorporação sob a perspectiva da relação Médium/Guia Espiritual.
Temos que a construção de um espaço interior e sagrado ao médium, por conta da prática da Incorporação e da relação dialógica (Carvalho, 1998) com os Guias Espirituais, é a constante na prática espiritual dentro da Umbanda, uma vez que nesta forma de religiosidade o acesso à dimensão do Sagrado não é realizada por meio de um pontífice ou um sistema doutrinário que codifique e cerceie as possibilidades de contato e relação com o universo espiritual, o qual pode ser interpretado de maneira plural, de acordo com as possibilidades e vivências próprias daquele que experimenta o transe.
Esta relação de constante diálogo entre médium-Guia, implica na utilização de determinadas funções psíquicas do médium, aprendidas no seu contexto religioso (ou até mesmo aquelas inatas), para que faça-se a comunhão espiritual. Dentre estas funções, estão: concentração, meditação, reflexão, oração, intuição, inspiração, além, é claro, do próprio transe.
Por meio das funções citadas acima é que o médium percebe e registra o pensamento de seu Guia ou Protetor, com o qual permuta continuamente as suas energias psíquicas, co-relacionadas com a sua psique e com o cérebro físico, o qual funciona como modulador destas mesmas funções.
O envolvimento nas irradiações do psiquismo dos Guias, ocasiona o processo de manifestação de símbolos advindos do inconsciente do médium, no qual localiza-se uma instância limiar que perpassa e permeia as ocorrências de entrelaçamento mental, entre outras manifestações paranormais, como seja o chamado Inconsciente Superior ou Superconsciente, segundo a denominação própria da Psicologia Transpessoal.
A maneira como dão-se as manifestações espirituais dentro das Leis de Umbanda, depreendemos das simbologias pertinentes ao universo semântico desta religião, as formas pelas quais os Espíritos Guias e Protetores irão utilizar-se para a sua "passagem" e presentificação nos trabalhos espirituais: "caboclos", "pretos-velhos", "baianos", "marinheiros", "crianças"...
Estas formas simbólicas de apresentação da realidade espiritual, contidas no imaginário umbandista, são importantes para entendermos como estão estabelecidas as relações mais ou menos estreitas e afetivas entre o sujeito/médium e aquele que representa seu Guia ou Protetor. À maneira como estão consteladas as imagens simbólicas no inconsciente do médium, este terá relações psíquicas diferenciadas entre aquele "grupo" de Espíritos que compõem a sua coroa mediúnica. Assim é que, normalmente, muitos médiuns, apesar de possuírem um Guia que lhe seja o seu principal mentor, estabelecem com um segundo Guia de suas correntes uma relação mais estreita de parceria e afinidade.
O imaginário coletivo umbandista permeia o fluxo das correntes de pensamento, pela Lei de Afinidade, as quais são dirigidas ao médium pelo plano Espiritual, assim como, inversamente, são emitidas pelo medianeiro em direção àqueles que se lhe afiguram como orientadores e mentores.
Na medida em que o médium transita entre a sua instância psíquica objetiva e aqueloutra subjetiva, onde estão gravadas as suas experiências vivenciadas na prática do transe de Incorporação, este vai adquirindo consciência de Si, como Espírito Imortal e totalmente vinculado a tudo o que existe no mundo, visível ou invisível.
Ipseidade, implica na compreensão do caráter individual e único de cada ente, distinguindo-o de todos o outros. O centro da consciência, define-se como o menor ponto "no interior" da alma do médium, no entanto, capaz de o iluminar por completo à medida em que pratica a incorporação (Carvalho, 1998).
São breves as vivências espirituais, bem como os registros destas afiguram-se, a princípio, fugidios. No entanto, neste processo de percorrer o trajeto de ida ao seu mundo interior, poder-se-á aperceber da riqueza simbólica (psíquica) e espiritual com as quais aos poucos vai constituindo-se e amadurecendo, concretizando seu processo de transformação íntima, como experiência espiritual, a tão falada "evolução espiritual".
Os Guias e Protetores, ao mesmo tempo em que conservam-se como seres transcendentes e à parte do inconsciente do médium, são também, dentro do sistema simbólico da Umbanda, símbolos que o integram e potenciais interlocutores sociais (Lambek apud Rotta, 2010).
Dessa forma, "colocar o coração (o sentimento, o afeto e, por derivação, a própria entrega à entidade, que é realmente muito intensa nessa tradição religiosa)", faz-se na Umbanda como "a mais desenvolvida das funções espirituais" (Carvalho, 1998).
A vinda dos Guias Espirituais, fazendo sua passagem do mundo espiritual para o mundo terreno, por meio de sua "descida", consolida a chegada do divino no terreiro, tornando sagrado o corpo e a mente do médium neste instante, pois que acessa e domina a mente do sensitivo durante o transe, mesmo que parcialmente. Isso faz com que o próprio médium integre-se à realidade espiritual e funda-se consciencialmente com o próprio Congá de seu terreiro (o espaço sagrado na Terra).
Cada médium que hoje trabalha com seus Guias e Protetores em seu terreiro, vivenciando a sacralidade do Congá, no qual fundem-se as Individualidades presentes num estado coletivo de fenômeno espiritual, revive no Rito a tradição praticada pelas gerações de médiuns e Guias que passaram pelo templo, reelaborando as forças espirituais primevas (as irradiações), trazendo-as para o tempo atual e reencaminhando-as para todos aqueles que pertencem, ou pertenceram, às correntes Astral e Mediúnica daquele templo.
A vivência do Sagrado e do fenômeno espiritual na Umbanda possibilita ao médium que, ao estreitar relação com o mundo transcendente, este possa perceber as dimensões mais amplas da Vida, na qual a Individualidade que se É compreende-se como estando vinculada a um esquema maior, de ordem Divina, do qual tornamo-nos aos poucos conscientes, como um ponto de luz que ilumina ao redor de si num Universo maior do que a razão intelectiva pode alcançar.
A prática das diferentes funções psíquicas, desde a reflexão interior até o transe de incorporação, veicula na mente do médium a presença Daqueles vindos de dimensões maiores da Vida, facultando o acesso às instâncias inconscientes de sua própria Individualidade, identificando-o com seu Orixá (o Deus-em-Si) num processo de ascenção contínua para o seu centro psíquico, o Self, concretizando o seu amadurecimento emocional e seu consequente aprimoramento espiritual.
Outrossim, o convívio psíquico com as mentes dos Guias e Protetores, segundo a perspectiva umbandista, promove a estimulação dos conteúdos mais profundos e plenificadores do médium, sob cujas suas influências, de grande força emocional, este acrisola a sua personalidade sutilizando seus pensamentos, sua sensibilidade, sua emotividade, alcançando novas concepções daquilo que está em seu patrimônio psicológico/espiritual, bem como daquilo que é próprio do Outro com o qual relaciona-se, também merecedor de apreciação e respeito.
Saravá a todos!
Referências:
Carvalho, José Jorge de (1998). A Tradição Mística Afro-Brasileira (artigo científico)
Pasqualin, Flavia Adrea (2009). Modo de vida e vivência do morto na Tenda Espírita de Umbanda Pai Benedito (tese de mestrado).
Santos, E.C.M (1999). Preto-Velho: As várias faces de um personagem religioso. (tese de mestrado)
Leme, F. R (2006). O uso do imaginário nos estudos afro-brasileiros e no culto umbandista (tese de mestrado)
Rotta, Raquel R.; Bairrão, J.F.H.M (2010). Mulheres médiuns e caboclas espirituais (artigo científico)