Por: Gregorio Lucio
Pretendemos, a partir de agora, iniciar nosso compêndio tratando especificamente do fenômeno de Incorporação, abordando diversas particularidades desta experiência mediúnica/espiritual, relacionando-as com aspectos integrantes da vivência do médium e das práticas umbandistas.
Assim, disponibilizaremos ao todo 5 textos, os quais tratarão dos seguintes temas:
1) A Manifestação;
Seguiremos estabelecendo considerações a respeito do primeiro tema: Incorporação - A Manifestação.
A questão a pontuarmos, para tratar do fenômeno de incorporação e sua manifestação, é a de justamente falarmos, sucintamente, do que representa este tipo de transe como experiência espiritual e corroborarmos o nome "popular" dado a esta modalidade mediúnica, dando-lhe senso de identidade e validade cultural/espiritual.
Queremos, com isso, dizer que Incorporação, dentro das práticas umbandistas, não é um termo errôneo, conforme encontramos citações em algumas obras de nosso circulo religioso e mesmo naquelas "kardecistas," pois diferentemente da maneira como esta irá processar-se durante a experiência mediúnica nas sessões espíritas, o mediunismo de Umbanda irá valer-se de todo um estado complexo - tanto das questões fisiológicas quanto psíquicas - que irá desencadear não somente a comunicação espiritual por meio da fala do médium (conforme aconteceria no termo psicofonia, próprio da conceituação "kardecista"), mas também todo um conjunto de ações efetivas no seu comportamento, expressando-se por meio de movimentos corporais (em alguns casos até de certa complexidade e tonicidade), bem como gestos, expressões e danças ritualísticas características de cada entidade manifestada.
Sendo assim, o que ocorre de fato na prática do mediunismo de Umbanda trata-se, positivamente, de uma Incorporação.
É claro que não cremos que o Espírito que se manifesta e comunica-se "entra" no corpo do médium, no entanto, o entrelaçamento psíquico e de energias pode ser tão intenso a ponto de deixar transparecer sinais patentes da Individualidade Espiritual que presentifica-se no momento do transe mediúnico.
Outra colocação importante a se fazer, a qual é muito pouco observada e comentada dentro dos círculos que lidam com a faculdade mediúnica e as experiências transcendentes, refere-se ao entender o transe como sendo o ponto denominador comum de todas as experiências espirituais ou místicas, na forma em que apresentem-se - ou apresentaram-se - em todas as culturas e religiões.
Dizemos isso pois, talvez por influência do pensamento espírita dentro da Umbanda, criou-se uma visão um tanto direcionada ao entendimento da experiência espiritual como sendo, invariavelmente, de caráter mediúnico. Em verdade, a comunicação mediúnica é uma dentre várias possibilidades ocorridas no momento do transe.
Importa, então, aprofundarmo-nos nestas considerações para que possamos compreender a Incorporação em seu aspecto de Manifestação no mediunismo de Umbanda.
Entendemos que, na Umbanda, a rito-liturgia é o veiculo pelo qual os seus adeptos vinculam-se à tradição do templo e louvam a Divindade, dando campo a exteriorização de seu sentimento religioso, num processo coletivo de compartilhar da experiência do Sagrado, pois conforme vimos e vivenciamos as giras no terreiro, compreendemos que todos, mesmo aqueles sentados na assistência, estão envolvidos nos trabalhos espirituais e compõem elos da corrente que forma-se dentro do congá, no espaço simbólico-espiritual, onde irão ocorrer as manifestações transcendentes e por onde as Entidades irão fazer-se presentes.
A manifestação do fenômeno espiritual tem, portanto, uma função social em decorrência da realidade transcendente que expressa e da simbologia de que se utiliza dentro dos ritos em um templo de Umbanda.
A dança, a expressão e a gestualidade do caboclo, do preto-velho, das crianças, dos baianos, etc, ao mesmo tempo em que tornam evidentes os estados psíquicos dos médiuns, pela sua mística e simbologia que carregam, comunicam aos presentes condições e momentos diversos dos trabalhos espirituais, bem como servem de referência para que aqueles "não-incorporados" presentes ao rito dirijam suas preces, rogativas e agradecimentos.
Igualmente, o neófito nas lides de Umbanda irá aprender a identificar os seus estados de transe e a comandá-los, por conta da disciplina a que se vincula dentro das práticas da casa, obedecendo a horários, dias e sistemas a serem aprendidos dentro do templo que frequente. A manifestação espiritual fora do momento e do local adequado (do trabalho espiritual dentro do templo de umbanda) é tida como indesejada e perturbadora e por isso o novo médium deverá educar-se a fim de conseguir esta coordenação da sua hipersensibilidade que o predispõe ao fenômeno.
Como umbandistas, nossa vida religiosa está centrada na vivência do fenômeno de ordem espiritual como sendo a porta de acesso direto à Divindade, representada pelas Entidades Espirituais próprias do contexto cultural-religioso em que estamos inseridos. Portanto, o veículo mediador desta experiência é o corpo. O médium é o próprio templo dos Orixás, de seus Guias e Protetores.
Dessa forma, a experiência do transe implica em reações psicofisiológicas específicas que abrirão campo para o transitar da consciência para níveis diferentes do convencional, os chamados Estado Alterados de Consciência (E.A.C), também entendidos como Estados Superiores de Consciência.
Estão dentro destas reações características a descontinuidade das funções de personalidade, psicomotoras, de memória, sensoriais e de comportamento. A maneira mais ou menos intensa em que estas reações processam-se, junto à transposição da consciência do indivíduo para níveis "não-convencionais", irá possibilitar por parte do médium um estado de maior ou menor lucidez durante a experiência do transe.
Esse "estado de coisas" experienciado pelo médium em relação ao seu psiquismo e ao seu organismo físico o levará, naturalmente, a criar identificações pontuais a respeito das imagens que lhe assomam à consciência, bem como as sensações físicas de que se vê "tomado", possibilitando por aí reconhecer qual a Entidade Espiritual que se lhe aproxima do campo mediúnico e com que tipo de energias está sendo influenciado neste momento.
A partir deste fenômeno de modificação da atividade cerebral, o nível de percepção subjetiva e objetiva do sujeito/médium altera-se facultando que ele vivencie a experiência mística/espiritual. Assim, sua individualidade fará um "movimento em sentido vertical", a projetar-se em direção à dimensão espiritual, abrindo campo para a comunhão com outras mentes situadas no plano astral.
Neste instante, ao passo em que o médium adquire uma percepção dilatada do ambiente em que encontra-se, e até mesmo de determinados aspectos da realidade espiritual, ele é acessado pela mente de Outro, com o qual irá comungar neste momento da experiência espiritual. Seu coração aumenta os batimentos, ao mesmo tempo em que uma sensação de agitação e alentamento dos pensamentos ocorrem. Um sentido de torpor e de perda de noção do tempo assomam-se e o acesso involuntário de uma nova expressão facial e postura corporal irrompem... O médium, momentaneamente, não é mais o Eu identificado ao Si-Mesmo, embora conserve o eixo e o centro de sua individualidade. Agora, é o Outro espiritual que movimenta-se e gesticula pelo seu corpo, manipulando-o por "motu proprio". É o Caboclo que chega em terra, o Preto-Velho que agacha e curva o corpo de seu "cavalo", as Ondinas, Caboclas e Sereias que giram e dançam extaticamente fitando seus espelhos, o Boiadeiro com seu laço e seu brado.
Assim, o médium "sente a presença" ou a "aproximação" de seu Guia, o qual "acosta-se", "irradia", dando a entender ainda um estado de transição "branda" entre o médium e o Espírito. A prática da dança ritualística e da oração consolidam o momento desta experiência e facultam ao adepto o estado de concentração mental e co-relação corporal adequadas para o estreitamento da ligação entre ambos.
Neste nível de convivência entre as duas mentes relacionadas no processo de comunhão espiritual, processa-se a assimilação das correntes de pensamento entre ambos, viabilizando ao longo do tempo a possibilidade da comunicação espiritual, processo em que o Guia ou Protetor irá servir-se das propriedades sensoriais, motoras e cognitivas do médium para presentificar-se.
Finalmente, concluiremos dizendo que a Umbanda prima por colocar o adepto em contato profundo com seu Orixá, com a "Divindade-em-si", de maneira que este possa fortalecer seu senso de identidade, ampliando suas concepções e conhecimentos diante da realidade, a qual é continuamente ressignificada e reelaborada por este, durante e após cada gira. Ao término dos trabalhos, "o dia renasce" pleno de novos significados e esperança aos presentes.
Adicionalmente, entendemos que todo este mecanismo de significação social, psicológica e espiritual do fenômeno do transe de incorporação é importante para fazermos entender que a comunicação mediúnica não é essencial para a vivência do adepto em relação ao seu contato com o mundo espiritual, sendo antes de tudo a condição de comunhão mental e espiritual a experiência preponderante no estado de plenificação e sentido da vivência religiosa.
Cremos, sinceramente, que a faculdade mediúnica direcionada à comunicação e atendimento ao próximo é patrimônio adquirido com anos (não poucos) de experiência e contato com o mundo espiritual, estando destinada a sua utilização eficaz e austera para aqueles que persistam no seu processo de educação mediúnica e vivência rituais.
Salientamos estes processos iniciais dentro do fenômeno de Incorporação e da prática umbandista, pois notamos uma preocupação exagerada, e até ingênua, por parte de muitos que pretendem obter da prática mediunista de Umbanda resultados rápidos e eficazes no contato com o mundo espiritual, esquecidos de que tal acontecimento exige conquista, vivência e disciplina dentro das Leis de Umbanda, sem contar nos acréscimos de responsabilidade diante da Vida e do próximo que nos procura, necessitado e aflito, o qual deve encontrar amparo num médium bem equipado, amadurecido e portador de uma faculdade nobre e bem adestrada de maneira a evitar enganos, mistificações e perturbações para si mesmo e para o outro, em desfavor à nossa Corrente Astral de Umbanda.
Saravá a todos!
Referências:
Carvalho, José Jorge de (1998). A tradição mística afro-brasileira (artigo científico)
Matta e Silva, W.W. da (2010). Umbanda de Todos Nós
d'Ávila, Rogério, Omena, Maurício (2006). Umbanda e seus graus inciáticos.
Aranauan, Mana, Kolofé, Mucuiu, Salve, Axé, Saravá,
ResponderExcluirPedimos agô para nos pronunciarmos neste blog logo após a nossa adesão a êle.
Gostamos demais de seus textos nosso caro amigo Gregório Lucio.
Além de Teólogo com ênfase nas religiões Afro-Brasileiras/Americanas, sou antes médium de terreiro, neófito na caminhanda da Iniciação, filho Espiritual de Pai Rivas(Mestre Arhapiagha.
Espero que me considere vosso amigo e irmão de fé. Lemos, alguns chegamos a reler. Temos a convicção de que as Religiões Afro-Brasileiras/Americanas na sua grande diversidade nos une cada vez mais. Nos une exatamente pelas diferenças pois que as diferenças nos fazem envidar esforços para o exercício de dar sentido para a compreensão(hermenêutica)destas mesmas diferenças. Cada um dará seu sentido pois estas diferenças proporcionadas são proporcionadas pela LIBERDADE da interpretação por meio de sua tansmissão que não é escrita e sim ORAL que permite a reelaboração com resignificações constantes.
Desejo a ti meu caro, vida longa e um início muito proficuo de uma amizade construída na Liberdade. Muito grato por nos proporcionar a leitura de textos que proporcionam a possibilidades imensas na compreensão cada vez mais abrangentes.
Abraços,
Massumi Miyazaki (Yaratan)
Teólogo formado na FTU
Pós graduando em Ciência da Religíões(PUCSP)
Filho espiritual de Pai Rivas(Mestre Arhapiagha)
Membro da OICD.
Olá Yaratan,
ResponderExcluirFico grato e feliz pelo material que ora apresento neste blog, como objeto de estudos e reflexões a respeito da Umbanda, possa ter contribuído a ampliação de sua compreensão a respeito de nosso círculo religioso.
Certamente a diversidade identifica as religiões afro-brasileiras e neste sentido faço-me solidário a compreensão que a FTU promove em torno destas questões. Embora nunca tenha tido nenhum tipo de contato com a OICD, tão pouco com a FTU, fico muito feliz em saber que também somos representados dentro do meio acadêmico.
Agradeço a abertura de seu sentimento fraterno e ficarei muito feliz em tê-lo como mais um amigo de caminhada espiritual, com a possibilidade de mantermos e ampliarmos nosso diálogo e reflexões críticas a respeito de nosso meio religioso e social.
Abs!
Gregorio.
Saudações a todos!!!
ResponderExcluirFico muito feliz de estar participando desta comunidade para o aprimoramento espiritual e observancia dos ensinamentos aqui relatados. È uma linguagem técnica e rebuscado. Fico feliz, muito feliz, tendo todas as respostas. Espero que todos gostem!!! Obrigada Gregório Lucio. A Umbanda sendo dismisticada de uma forma acadêmica. Fico muito feliz! nivea costa.
Agradecemos as suas palavras Nivea.
ExcluirFicamos, de nossa parte, também muito felizes por saber que nosso material tem contribuido com seus estudos e ampliação de conhecimento.
Fique atenta! em breve publicaremos uma série de textos tratando dos processos envolvidos no desenvolvimento mediúnico e na experiência do transe dentro da Umbanda.
Abraços e um saravá!
Gregorio Lucio