quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Incorporação - Parte 2: A interpretação Psíquica e Espiritual do Fenômeno


Por: Gregorio Lucio

Abordaremos os aspectos da interpretação Psíquica e Espiritual envolvidos no fenômeno de Incorporação, próprio ao mediunismo de Umbanda. Dessa forma, estabeleceremos uma interface entre as abordagens de viés psicológico e espiritual, englobadas nesta fenomenologia, de maneira a contemplar e fornecer subsídios às reflexões dos interessados e experienciadores (médiuns) de tais ocorrências.

A presentificação das entidades espirituais, dentro das práticas mediunistas de Umbanda, é a condição fundamental para que possa processar-se uma gira. Todo o mecanismo e sistema rito-litúrgico desenvolvido no culto religioso visa, primordialmente, a consecução do fenômeno espiritual, por meio do qual o adepto entrará em contato com o Sagrado.

São as entidades presentes "em terra", através da fenomenologia mediúnica, que irão trazer do mundo espiritual as forças divinas que serão entregues ao ambiente e aos participantes do rito, bem como poderão ministrar o concurso do atendimento e da palavra para aqueles necessitados de esclarecimento, orientação, cura de males psíquicos, espirituais e até orgânicos.


Podemos definir o fenômeno do transe de incorporação como sendo a "consciência modificada, caracterizada por uma mudança qualitativa da consciência ordinária, da percepção do espaço e do tempo, da imagem do corpo e da identidade pessoal" (Lapace apud Barbara, 2002).

O processo de alteração da consciência do indivíduo médium dá-se, segundo a visão própria dos umbandistas, como decorrência de uma capacidade inata de sensopercepção da realidade espiritual, caracterizada por uma hipersensibilidade psíquica e fisiológica, predisponente ao transe mediúnico de incorporação. Essa hipersensibilidade deverá ser adestrada ao longo do processo de seu "desenvolvimento" mediúnico, pela vivência do transe de maneira ordenada e sistematizada, assim como pelas práticas rituais, as quais o médium deverá submeter-se (servindo-se dos banhos de ervas, da "iluminação" e firmeza de suas correntes, etc). 

Dizemos, a partir de um "senso comum", ser por conta do "afastamento" do corpo espiritual do médium, o processo pelo qual irá efetuar-se a ligação da Entidade Espiritual ao seu corpo astral, num primeiro momento, para que por meio deste possa dirigir o corpo físico do sensitivo e apossar-se de seu psiquismo, alterando-lhe as expressões e manifestando sua própria individualidade, diferenciada daquela própria do médium, embora permaneça conservada a estrutura e coerência subjetiva deste.


Entendemos ser este "afastamento" do corpo espiritual do médium a condição de fluência e dinâmica de nossos padrões de percepção consciente, os quais transitam continuamente, da dimensão biológica a dimensão psicológica, sob cuja condição o indivíduo percebe (torna consciente) desde um estímulo em determinada região de seu organismo, por um determinado espaço de tempo, para em seguida entregar-se a pensamentos e reflexões mais ou menos envolventes, desapercebendo-se da realidade "exterior", do mundo que o cerca.

Dentro das práticas rito-litúrgicas da Umbanda, o médium aprenderá a servir-se de recursos próprios para direcionar seu pensamento e suas emoções, de maneira a criar as condições de expansão da sua consciência, voluntariamente, para que ocorra a transposição de seu estado consciencial ordinário para aqueloutros de natureza "superior",  pelos quais sintonizará com o pensamento irradiante dos espíritos Guias e Protetores vinculados à sua coroa mediúnica.

Na esfera espiritual, o processo ajustado pelos Espíritos que irão incorporar-se ao médium caracteriza-se pela "aproximação" destes ao seu campo vibratório, o qual pode ser definido como sendo o conjunto de pensamentos e emoções, dos quais o medianeiro disponha em seu cotidiano. A conjunção do "pensar e sentir" determina a cada um o seu padrão de forças potencial, o qual situa-nos em relação a dimensão astral, caracterizando quais sejam as nossas respectivas afinidades espirituais e momento evolutivo. Em decorrência, os Espíritos Guias e Protetores irão buscar sintonizar-se com o medianeiro, inspirando-o (num primeiro instante) a elevar sua condição mental, por meio da oração e das práticas ritualísticas já mencionadas.

Dessa forma, a interpenetração dos pensamentos de ambos (médium-Guia), criará um campo de potencial único, no qual circularão as imagens mentais a serem assimiladas pelo médium, das quais a pouco e pouco este irá apercebendo-se, proporcionando o estreitamento de forças e o enlace da Entidade Espiritual junto ao seu corpo espiritual e físico. Esta mecânica dar-se-á acompanhada de sensações corporais características, como seja um leve torpor, espasmos involuntários nos membros superiores e inferiores, aumento da frequência cardíaca, aumento da necessidade de oxigenação, leve tremor em regiões diferenciadas do corpo, etc.


Este campo de forças, constituído pela contínua postura de "passividade" - espontânea e comandada - do médium frente ao impulso e direcionamento dado pela Entidade Espiritual, funcionará como o elo sustentador do transe, uma vez que o pensamento de dúvida ou resistência por parte de um ou de ambos os envolvidos no processo, ocasionará, invariavelmente, a desvinculação mental e, consequentemente, a comunhão espiritual não poderá existir. 

"O transe e o corpo são a viabilidade para que expressões que transcendem o sujeito psicológico possam se expressar de maneira rica e multifacetada  nas várias formas que se apresentam nos rituais umbandistas (Bairrão apud Pelliciari, 2008).

As Entidades Espirituais, ao ligarem-se ao corpo espiritual do médium, manipulam-no por intermédio dos chakras, também conhecidos como centros de iluminação. Estes centros de força estão localizados na dimensão astral (corpo espiritual) e encontram correspondência em nosso organismo físico. Vejamos:

Chakra Coronário - Alto da Cabeça (coroa)
Chakra Frontal - Entre os Olhos
Chakra Laríngeo - Garganta (aparelho fonador)
Chakra Cardíaco - Centro do Tórax (coração)
Chakra Esplênico - Baço
Chakra Solar (Gástrico) - Umbigo
Chakra Básico (Sacro) - Órgãos Genitais  

No entanto, gostaríamos de relacionar um aspecto interessante a respeito do processo de incorporação, segundo o qual são os componentes de natureza emocional que dispõem da "força imantatória" responsável por conectar a mente extra-física à mente encarnada, enlaçando a Entidade Espiritual ao corpo astral do médium.

O processo de incorporação movimenta grande carga emotiva no campo psíquico do médium, tanto quanto no Ser desencarnado que partilha do processo de comunhão espiritual. Ao mesmo tempo em que o medianeiro sente sua consciência tomada por pensamentos, imagens e uma "impulsividade" intrusivas e incontroláveis (como se uma força superior o dominasse, embora de maneira voluntária), o Ser Espiritual envolvido no mecanismo mediúnico irá deixar-se também tocar pelas sensações de "imergir" no complexo orgânico, sentindo-lhe de maneira intensa as irradiações eletromagnéticas, a temperatura, o fluxo sanguíneo, os batimentos cardíacos, etc, vendo-se interpenetrar numa câmara escura e reacendendo sua percepção lúcida após a conclusão deste momento em que há a confluência das forças de ambas as dimensões para culminar na "chegada em terra" da entidade manifestante.

Salientamos que a Entidade Espiritual não entra no corpo do médium, tomando o "lugar" do Espírito-médium, no entanto, o entrelaçamento de mentes situadas em campos dimensionais diversos ocasiona a interpenetração dos campos vibratórios do sensitivo e do Guia/Protetor, o qual leva à sensação de estar sendo "tomado" por um Outro (no caso do médium), ao mesmo tempo a de estar "mergulhando" para dentro do organismo físico (no caso da Entidade Espiritual). Talvez essas impressões subjetivas, relatadas em tempos passados, numa época em que não se conhecia os mecanismos psíquicos e mesmo as reações fisiológicas envolvidas no transe mediúnico, levaram a crença de que o Ser manifestante entraria no corpo do médium, tomando o lugar de sua Individualidade Espiritual.

Outro ponto a tratarmos neste texto refere-se ao campo vibratório identificador do médium, o qual é único e demarcador de sua identidade espiritual. Este campo está assignado a um determinado Guia/Protetor de nossa Corrente Astral de Umbanda, o qual é o responsável por "abrir" e "fechar" o campo mediúnico, de maneira que as ocorrências espirituais perpassem sempre por esta "tela dimensional" situada entre as irradiações do médium e do seu Guia/Protetor "pai-de-cabeça", "guia-de-frente", entre outros nomes que este possa receber.

Assim compreenderemos - no processo mediúnico positivo, evidentemente - que a abertura do contato mediúnico entre médium e a realidade espiritual irá ser desencadeada pela confluência das correntes de pensamento entre este e o seu guia-de-frente, e as demais entidades manifestantes deverão penetrar, com consentimento de ambos (médium e Guia), este campo estabelecido.


Obviamente, para esse contato mediúnico ocorrer neste nível é preciso que o médium esteja em processo de conscientização a respeito de sua potencialidade mediúnica, para que em seguida esta possa vir-a-ser uma faculdade.

O termo "Faculdade", aqui empregado, remete-nos à condição de conquista e automatização de determinados processos psíquicos e orgânicos, os quais são "condicionados" e "comandados" pelo sujeito médium, tanto quanto pelo Espírito Guia envolvido no processo de comunhão espiritual,  a fim de proporcionar uma Incorporação equilibrada e suave, evitando desgastes e perturbação por parte do médium e também do Ser Espiritual, os quais poderão ressentir-se demasiadamente em ocasião de uma "união" ou "ruptura" brusca e repentina entre ambos. Aliás, por isso é que recomenda-se falar ao médium, quando este está em transe, com suavidade evitando tocar-lhe de maneira abrupta, uma vez que está em estado acentuado de sensibilidade psíquica e orgânica.

De igual maneira, os médiuns em transe, no momento em que transitam pelo congá ou realizam sua dança ritualística devem evitar o contato físico com outros, pois sua sensibilidade pode ser atingida em prejuízo ao estado de transe pronunciado pela comunhão espiritual.

Por último, pontuaremos algumas considerações a respeito da influência da conduta interior do médium como sendo o ponto focal para a conclusão efetiva do mecanismo de Incorporação. A prática da oração - não somente no ambiente do terreiro, mas no cotidiano particular -, a participação efetiva e contínua nos ritos realizados pelo templo (do início ao fim), assim como a conduta caritativa, a alegria de servir, e o exercício Ético e Moral, induzem à centralização e condução salutar de sua Individualidade, por cujo núcleo (da Individualidade) irão fluir aqueles conteúdos identificados ao Si-Mesmo, possibilitando fortalecer-se e reelaborar os aspectos de sua Personalidade, conscientes e inconscientes.

Essa dinâmica objetiva fazer com que a fluência destes conteúdos não entravem o processo de recepção da corrente de pensamentos e as irradiações dos Espíritos Guias, as quais chegam à nossa percepção consciente por intermédio do nosso psiquismo.

O "médium" de conduta egoísta, intolerante, insensível, agressiva, renitente, etc, revela possuir complexos psíquicos que situam o seu Ego em uma instância bloqueadora dos conteúdos próprios (inconscientes) e também daqueles transcendentes, não possibilitando a fixação e a consequente propagação da corrente mediúnica, em prejuízo de si mesmo, pois dificilmente poderá situar-se numa condição consciente e plenificadora de seus estados de transe, uma vez que não cede espaço ao Outro dentro de Si, tornando-se impermeável às influenciações de seus próprios conteúdos numinosos, bem como das inteligências extra-físicas que buscam orientá-lo e auxiliá-lo.

Somente quando abrimo-nos para a Vida, com a meta de transformarmo-nos continuamente, realizando nosso caminho de descoberta interior e libertação das distrações a que nos apegamos ao longo de nossa jornada, é que podemos alçar vistas aos aspectos mais profundos de nossa Individualidade, de procedência Espiritual, facultando-nos aprimorar nossos processos mentais, o direcionamento de nossos pensamentos e atitudes, bem como descortinar as nossas dificuldades e possibilidades de ação nas mais variadas formas em que apresentem-se.

Assim, como indivíduos seguros e maduros em torno daquilo que represente nosso próprio mundo interior, saberemos diferenciar-nos e situar nossa postura psíquica para servirmos ao nosso propósito de relação profunda com os Orixás, Guias e Protetores, tornando-nos melhores Espíritos e médiuns, ativos e cooperadores, espelhando de forma cristalina o pensamento dos Numes da Espiritualidade, auxiliando o próximo e plenificando a nós mesmos.

Saravá a todos!

Referências:

Matta e Silva, W.W da (2010). Umbanda de Todos Nós
Rivas Neto, Francisco (2002). Umbanda A Proto-Sintese Cósmica
Barbara, Rosamaria (2002). A Dança das Iabás (tese de doutorado)
Pelliciari, Fabiana Sampaio (2008). Estudo da significância do corpo na Umbanda: limites e possibilidades de aplicabilidade de alguns conceitos lacanianos (tese de mestrado)
Morini, C.A. Trinca. (2007). Ritual de Umbanda: A influência dos estímulos somato-sensoriais na indução do transe mediúnico (tese de mestrado)

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